Seguindo pela trilha de republicação das matérias selecionadas, eis uma muito interessante, divulgada há algum tempo, que trata de culturas diversas: vinho e literatura.
Isso aconteceu há algum tempo, e diria até de forma inesperada, quando tentei, de forma divertida e diferente, fundir dois dos mais importantes mundos culturais que me rodeiam, dois mundos que vivencio quando não estou aborrecidamente comprometido com algo: a literatura, por ser escritor de literatura fantástica, e o vinho, por ser sommelier.
Deixe-me logo esclarecer: não que não leve a sério, digo, profissionalmente, esses assuntos, mas eles só existem em minha mente em forma de prazer ou para fazer com que eu ofereça esse prazer a alguém interessado – ao publicar uma boa obra, por exemplo. Se encarar ambos como trabalho, o produto final nunca será bom o suficiente.
Voltando ao tema, não entendeu bulhufas como é possível tal fusão? Explicarei.
Em um determinado dia, quando avaliava um bom Barolo, pensando em um novo enredo para um conto, a idéia me surgiu. Por que manter essa linha divisional entre dois prazeres distintos?, pensei, relanceando o olhar do Barolo às letras confusas do laptop. Descobri que a tal barreira era meramente conceitual, algo como uma regra imposta em meu cérebro sabe-se lá por qual motivo… só sabia que ela estava lá, a tal regra, um tanto insolente e visivelmente inflexível.
Enquanto girava a taça, permitindo liberar toda a fragrância do nobre Piemontês, marcada pelas densas lágrimas rubras – com a margem refletindo um tímido laranja, por causa da sua idade avançada – escorridas pela lateral, algumas idéias macabras me assombraram a imaginação… foi aí que a primeira fusão surgiu: esse vigoroso e robusto vinho combina com alguns trechos mais ousados, pavorosos de uma boa história de terror… e, pela nobreza de seu caráter, com alguns contos ingleses de terror do século XIX, pensei. Logo me veio à mente o conto intitulado “Os Salgueiros”, junto à figura do seu autor, Algernon Blackwood, vestido em seu fraque bem delineado, sentado em uma poltrona elegante defronte a uma colossal lareira crepitante.
Sorri involuntariamente com a idéia e a quebra da regra separatista. Então, o que acompanharia uma boa história de suspense?, cogitei. Talvez um Cabernet Sauvignon? Ah, sim, claro, antecipei-me e logo fiz uma oportuna distinção: se fosse um suspense policial atual, bem movimentado, cenas audaciosas, explosivas, e algumas facas e gargantas maculadas de sangue, como uma obra de Dan Brown, por exemplo, ou de John Grisham, optaria por um elaborado no Novo Mundo. Mas se fosse um à la Oscar Wilde, em seu “O Retrato de Dorian Gray”, isto é, mais histórico e um tanto filosófico, certamente seria um corte Bordalês. Por favor, não me entendam mal… ambos tem seus valores: por exemplo, o Cabernet Americano, seja ele do Norte ou Sul, é mais corpulento, escuro e denso, lembra mais ação, mais desafio, e tem um padrão de qualidade similar, uma fórmula, como as obras dos autores que mencionei… suas safras fazem vinhos parecidíssimos; já o Francês é mais equilibrado, por vezes nos impressiona demais ou nos decepciona deveras. Causa sempre surpresas e nos incita a conhecê-lo cada vez mais.
Tratando-se de uma história de suspense policial mais fática, voltada para os problemas do dia-a-dia, como “Um Doce Aroma de Morte”, por exemplo, de Guillermo Arriaga, abriria um bom Syrah… aromático, agradável e macio, contudo escuro e um pouco apimentado. Uma bela composição entre um suspense clássico e bem acabado, histórico, agradáveis e inesperadas reviravoltas, um Pinot Noir da Borgonha seria o ideal. De preferência, se o vinho acompanhasse cada página, passo-a-passo… mas isso é muita elucubração da minha parte, não?
Depois, detive-me pensando em outras ramificações da literatura, que certamente não são o meu forte, embora tenha tentado igualmente compará-los. Imaginei um romance leve, com nuances de casaizinhos se dando bem ao final… um daqueles parecidos com filmes em que o sujeito fica sabendo que a pretendente está prestes a embarcar em um vôo para algum lugar como Nuuk, e finaliza com ambos se beijando, cercados de pessoas bem intencionadas aplaudindo-os, mesmo em pleno rush de aeroportos, problemas como greves, perdas de malas etc, etc… o mais indicado nesse caso seria um Champagne, ou um bom espumante, pode ser nacional, pois temos grandes espumantes sendo elaborados por aqui.
Agora, se é um romance picante, um tanto rodeado de discórdias e traições, sexo adoidado, tentaria um Chardonnay do Novo Mundo. Seu caráter amanteigado untuoso, um tanto mineral (se bem que um Chablis exibe uma complexidade mais acentuada de minerais), daria um gás em seus nervos durante os trechos. Se o teor do livro fosse farto de drama, no qual há brigas entre casais, pais e filhos, doenças terminais entre outras desgraças da vida, ficaria com um Savignon Blanc… essencialmente ácido, floral, ataca sua língua, muitas vezes de forma deliciosa, sem parecer violento por causa de sua leveza. Um Neozelandês seria ótimo. Neste caso, ou melhor, no meu caso, talvez nem prestasse muita atenção nas linhas exageradamente lamuriosas.
Sim, é isso, a idéia da fusão é esta. Quer tentar? Faça, divirta-se um pouco em seus próprios devaneios, ou divida-os com um bom confrade. Vinho e livro, uma excelente combinação! Agora preciso ir, assumi o compromisso de ler algo aos meus filhos, algo infantil e um tanto conceitual. Ei, espere! Acho que resgatarei aquela garrafa de vinho do Porto que está no fim, quase oxidando na última prateleira da geladeira… será que sua doçura combinará com o enredo infantil?
Até a próxima coluna… Cheers!