Vaga zero

Eu perdi o meu pé? – sussurrou a menina desmantelada no asfalto, após ser atropelada por um Celta no esburacado Contorno Norte.

Sua preocupação tinha algum sentido. Ao recobrar a consciência, avistou caído na pista um dos seus tênis, sujo de sangue. Assustada, logo pensou que ali estaria o seu pé.

Felizmente não perdeu nenhum deles, mas teve diversas lesões e fraturas. Aos poucos, a dor foi lhe dando pistas de que estava muito ferida e, num vai e vem dos sentidos, percebeu ao longe uma sirene.

O som distante logo se tornou exagerado, anunciando a chegada dos bombeiros. Iniciava ali a via-crúcis pelos hospitais da cidade. Encaminhada para o hospital A, o atendimento foi categoricamente recusado, pois o tomógrafo estava quebrado.

Embarcada de novo, a vítima foi então levada para o hospital B, no qual recebeu outra negativa por não haver macas disponíveis.

A esperança final estava no hospital C, que precisou de uma “carteirada” para aceitar a paciente. Afinal, a ambulância já circulava há duas horas com uma politraumatizada de 16 anos a bordo.

A carteirada foi um mal necessário, usando uma portaria do Ministério da Saúde que prevê a ‘Vaga Zero’. Segundo o governo, um hospital não ter vagas pouco importa e, se preciso for, os serviços de resgate devem empurrar seus pacientes para dentro do PS. Na marra mesmo, sem maca ou qualquer infraestrutura. Na prática é uma solução esdrúxula, que maltrata ainda mais os usuários do SUS.

Isso aconteceu com a paciente dessa história, que foi “acomodada” em uma cadeira velha por diversas horas até receber alguma atenção.

Curitiba precisa de mais leitos agora, mas falar disso parece ser perda de tempo. Logo aparecem secretários de saúde e autoridades públicas se vangloriando de que um majestoso hospital será construído em breve.

Promessas vazias à parte, me pego calculando quantos já sofreram, ou mesmo morreram, pela competência zero dessa gente.

Olha só:

Essa crônica foi baseada em um atendimento de setembro de 2014. Sem saber, aqueles bombeiros estavam atendendo ao milésimo atropelamento do ano em Curitiba.