Tapa na cara

Observo calado o moleque que furiosamente havia matado a tiros um policial militar. As gotas do seu soro caem lentamente, num pinga-pinga que leva consigo todo tipo de medicamento. O respirador artificial sobe e desce num ritmo preguiçoso, fornecendo o oxigênio precioso para o paciente em coma.

O silêncio da unidade de terapia intensiva é curioso em seus barulhinhos, apitos e ruídos. Sondas, monitores, sensores… é a tal da tecnologia mantendo vivo quem já era para estar morto. Havia tantos disparos em seu tórax e cabeça, que não seria exagero dizer que ele mais parecia uma peneira.

No dia anterior, na admissão do paciente na sala de emergência, um dos médicos levou um sonoro tapa na cara, dado por um revoltado e truculento policial.

O motivo?

Estar “lambendo” um bandido que acabara de tirar a vida do seu colega de patrulha.

Complicado.

Certa vez, um dos professores da cirurgia falou que é preciso saber tudo da história do paciente, exceto suas maldades.

Ele tinha razão. Conhecer o lado podre dos pacientes interfere em nossa conduta e isso pode mandar para o beleléu a relação médico-paciente. Dá um nó na cabeça colocar na balança a história de uma pessoa com uma extensa ficha de brutalidades sociais e comparar isso com a vida de um jovem policial, que ainda acreditava que a sua cidade poderia ser um lugar melhor.

A duras penas, vou aprendendo que um hospital não é igreja para perdoar, tampouco tribunal para condenar. Muito do que aparece por aqui não é resultado tão somente da celebrada injustiça social. O que há é uma maldade difícil de ser explicada e que diariamente estampa nossos jornais. Percebo nas pessoas uma intolerância e um ódio que invariavelmente só levam a mais ódio e intolerância.

Onde essa história vai acabar?

A lugar nenhum, claro. Somos tão imunes à desgraça alheia que não percebemos o quanto ela está perto.

Da nossa porta. Das nossas vidas.