Quem foi você?

João. Era o que estava escrito em seu prontuário. Mas, num post-it grudado em sua ficha de internamento, a ordem era para que fosse chamado pelo seu nome social. Maria.

Quando chegou ao pronto-socorro, mal consegui ver o seu rosto. Havia apanhado tanto de um ’cliente’, que tudo que sobrara de sua cara era inchaço e sangue.

Enquanto a enfermagem trocava sua roupa, colocando a camisola infame do hospital, me assustei com as cicatrizes de seu corpo. As marcas da violência das ruas se confundiam com as deixadas por cirurgias plásticas, todas de qualidade pra lá de duvidosa.

Implante mamário, silicone em coxas, glúteos… acabo me perguntando qual seria a maior agressão. A provocada pela intolerância social a tudo o que é diferente? Ou aquela em que a busca pela imagem perfeita se confunde com a própria autodestruição? Nos dois casos, quem parece perder é o ser humano com a pretensão de desafiar um mundo.

Depois desse episódio, vi Maria umas duas vezes, sempre ’causando’ lá na sala de emergência.

Hoje escrevo com o espanto de saber de sua morte prematura, após uma cirurgia de lipoaspiração.

Sei que pacientes entram e saem de nossas vidas o tempo todo. E sei que julguei um deles sem sequer conhecê-lo.

Poxa, o que você foi fazer de sua vida, João?

E o que a vida fez de você, Maria?

Sinto muito por não entender.

Olha só

Desde 2013, o SUS preconiza o acolhimento humanizado de travestis e transexuais. Além do nome social, estes pacientes podem utilizar-se de sanitários e enfermarias femininos.