Faz de conta

Dia de reunião dos médicos do trauma.
Depois de um plantão dobrado, olho para um zumbi no espelho enquanto lavo meu rosto, na tentativa de despertar para a passagem dos casos. É a oportunidade que o pessoal tem para discutir os acidentes da semana, identificando falhas e buscando, de alguma forma, melhorias no atendimento da emergência.

Entre os casos que foram revisados, há dois que eu gostaria de compartilhar com você, ambos envolvendo motociclistas.

O primeiro, um senhor de 50 e poucos anos que não afivelou a cinta do capacete. O segundo, um jovem de uns 20 anos que usava um modelo de capacete sem queixeira.

No primeiro caso, o senhor perdeu o controle da moto na Praça Tiradentes, caindo sozinho. Por estar solto, o capacete voou para longe e o piloto sofreu um trauma cranioencefálico. Levado direto para o centro cirúrgico, foi a óbito na mesa.

No outro acidente, o condutor teve seu rosto desfigurado após arrastá-lo pelo asfalto depois de uma queda na chuva. Sobreviveu, mas até agora ninguém teve coragem de lhe emprestar um espelho.

Os dois casos fazem parte do feijão com arroz aqui no hospital. Mas lendo e relendo esses prontuários eu lhe pergunto: adianta alguma coisa usar o tal do capacete?

Calma. Obviamente não se trata de nenhuma apologia ao fim do uso do capacete. Muito longe de mim.

Mas a verdade é que, em termos de segurança, os motociclistas têm vivido em um verdadeiro mundo do faz de conta. Enquanto um automóvel traz consigo mais de 20 itens de segurança, um motoqueiro conta – efetivamente – com apenas uma boa dose de sorte. Capacete, roupa de couro, mata-cachorro, faixa refletiva. Todos acessórios que “fazemos de conta” que transformam uma motocicleta em algo seguro para se guiar.

Quando esses pacientes chegam aqui mutilados, é fácil perceber que o problema não está no modelo do capacete ou na maneira como o motoqueiro o utiliza. O problema está em um mercado milionário que comercializa veículos baratos que dependem exclusivamente de um único item efetivo de segurança: o anjo da guarda de cada motociclista.

OLHA SÓ:

Em 2013, Curitiba registrou 12 acidentes de moto por dia. Até quando “faremos de conta” que isso é normal?