Entre trilhos e trens

Existem coisas que fazemos na vida e que depois precisamos esquecer.

Ou simplesmente fingir que esquecemos.

Daquela manhã, Janaína não se lembra de nada.

O mato e uma intensa neblina cobriam os trilhos e, ao longe, um tremor abafado anunciava o velho trem de carga, preguiçoso em sua viagem para o porto.

Daquela vez, ela não se lembra de nada.

Não se recorda de sua tristeza entorpecida, do grito dos freios ou da buzina usada em desespero pelo condutor da locomotiva.

Tampouco se lembra dos motivos que a levaram a fazer o que fez.

Nossa capital é entrecortada por 40 quilômetros de trilhos, pelos quais diariamente saracoteiam locomotivas de até 200 toneladas.

Não, não é uma convivência pacífica.

De tempos em tempos, estes gigantes se envolvem em atropelamentos e colisões que costumam engolir veículos e mastigar pessoas. Nos últimos cinco anos, os bombeiros foram acionados para o atendimento de 47 feridos. Destes, sete morreram na hora, de maneira brutal.

Muito do que é atendido se dá pela falta de “atenção” dos pedestres e pelo desrespeito à legislação de trânsito. Além disso – e por mais incrível que pareça – existe um vandalismo sistêmico de placas, cancelas e dispositivos elétricos de segurança, o que prejudica por completo a sinalização férrea nos cruzamentos com as ruas.

Agora, Janaína faz parte dessas estatísticas. Mais que isso, foi ela quem me ensinou o verdadeiro significado da expressão “estado grave”.

Ela chegou praticamente sem sangue no PS, mutilada em pernas e braço esquerdo. A cirurgia de contenção de danos levou horas, sendo necessário o apoio incondicional da cirurgia geral, do pessoal da orto e da vascular.

Quem esteve lá ainda não acredita que ela sobreviveu.

Naquele dia, confesso que saí abatido do centro cirúrgico, buscando o silêncio da capela do hospital.

Existem coisas que presenciamos na vida e que precisamos esquecer.

Simplesmente esquecer.