“Ui, mas QUEM gosta de bala de banana?”, me perguntou, torcendo o nariz, alguma tonta de topete de laquê e sotaque do Batel. Nem lembro o nome, mas devia ser “Carol” ou “Jú”, que era o que mais tinha naquela época.
O ano era 1.991, auge da pré-escola, quando o então afamado “dia da balinha” era motivo de euforia (hoje certamente isso não existe mais, devendo ter sido substituído pelo “dia da granola”; “dia da chia”, “dia da kombucha”, ou sei lá). Basicamente, cada aluno levava uma balinha pra escola e, depois do lanche, a professora deixava trocar com o colega.
+ Veja também: Pena que elas ainda não se ligaram (e talvez isso nunca mude)
Se em casa de mãe natureba (como a minha) não entra nem margarina com sal, imagina bala Sete-Belo. Pois lá fui, rumo ao dia da balinha, com um saquinho cheio de balas de banana – dessa que vem embrulhadinha no papelzinho verde – que era o máximo em termos de “doce de pacote” que minha mãe comprava naquela época. Eu adorava. Achava gostoso deixar o açúcar derreter na boca e depois morder o doce azedinho.
O problema é que numa escola “new money”, em plena era das sandalinhas de plástico com glitter e body splash da Victoria Secret’s, nem todo mundo achava “cool” as tais balinhas do papelzinho verde. Legais mesmo eram os Power-Sweet-Unicorn-Flavored-Fucking-Pops. Ou as Blister-Sour-Shitty-Surprise-Candy.
+ Leia também: Chega uma hora, que chega!
Então, basicamente, ninguém quis trocar comigo e, no fim, eu mesma comi minhas balinhas que, aquele dia, tiveram gosto de rejeição e demoraram um pouco a passar pelo nó na minha garganta. Eu tinha só quatro anos, não usava topete, calçava bota ortopédica e falava com sotaque do norte do Paraná em plena Curitiba-Cidade-Sorriso. Ali eu começava a aprender como gente babaca incomoda e foi também ali que eu decidi que jamais seria como um deles.
Com o lastro da educação básica familiar/religiosa que recebi, aprendi que falar tudo que se pensa ou comentar tudo aquilo de que se discorda é feio e desnecessário. Que, fazendo isso, a gente se expõe, incomoda os outros. Que melhor que retrucar é deixar a feiúra com eles e sair à francesa, como se não tivesse visto ou ouvido. Isso é ser educado. É ser elegante. É ser chique.
Que se o outro é mau, ignorante ou grosseiro comigo, se me assedia, agride, persegue ou só torce o nariz pras minhas balinhas de banana mesmo, meu papel é ser fina e espiritualmente elevada. Que os babacas são eles, não eu.
+ Leia mais: Nova obsessão – subir minha nota no app de carona
Ao longo da vida, a duras penas, cumpri a missão. Fossem sapinhos ou sapões, fui aprendendo a engoli-los, ainda bem vivos, viscosos, a coaxar enquanto desciam garganta abaixo. Embora tenha demorado a me acostumar à ânsia de senti-los ainda nadando em meu estômago, debatendo-se, tentando subir desesperados esôfago acima, deslizando as patas rugosas pelas paredes da faringe, eu os engolia de volta. “Fiquem aí”.
Uma hora, parou de incomodar. E doutrinada pela positividade tóxica, passei a encarar o martírio com pensamentos como “tudo que vai, volta”; “é tudo inveja”; “isso mostra que você é boa demais”. Com o tempo, cheguei até mesmo a ostentar certo orgulho da coleção de cadáveres de anfíbios boiando às pilhas em meu estômago, alastrada pelo discurso do autocontrole, da serenidade e da sabedoria. O veneno, o chorume podre, o pântano, viraram lugar comum, afinal, “eu sou melhor que tudo isso”.
+ Veja mais: A ‘Vida dos Outros’ e a minha – que parou pra cuspir na minha cara
Um dia, saltou de inopino na minha frente, um gigantesco Cururu adulto venenoso. Não diferente de muitos da espécie que, com sucesso, eu já tinha engolido antes: invasores, perigosos e apocalípticos. E lá veio, forçando a entrada goela adentro. Eu tentei. Juro. Reunindo todas as forças cósmicas, busquei a auto-elevação e todos os versículos bíblicos de que me lembrava. Não deu.
Numa reação automática, regurgitei o Cururu que já estava quase na metade da minha garganta. Foi uma hecatombe. Saiu pelas narinas, sujou meu cabelo, espirrou pelas paredes. O vomitório aconteceu na frente de outras pessoas, o que tornou a ocasião um pouco mais vergonhosa. Foi demais, eu confesso, mas o sapo saiu vivo (coberto de bile, é verdade) e eu, aliviada.
Nesse dia eu fui uma péssima cristã. Fiz feio de verdade. Não foi chique, não foi refinado. Não foi sábio. Nesse dia eu fui uma babaca e não me arrependi. Perdão, mãe. Perdão, Deus. É que esse não deu.
Depois passou e agora, oficialmente, deixei de ser sommelier de sapo. Perdão, mãe. Perdão, Deus. Mas agora sou seletiva. Alguns sapos eu sei que não vai ter jeito e eu vou ter que engolir em respeito ao Código Penal Brasileiro. Na pior das hipóteses, eu empurro junto com umas balinhas de banana, que me lembram que não sou do grupo dos babacas e ajudam a disfarçar o gosto ruim.