Vovó Djanira fez tatuagem de borboleta no ombro direito

Uma senhora de aproximadamente 65 anos entrou faceira no Água Verde-Abranches com blusa de listras vermelha e branca e saia branca. Ela estava de cabelos prateados curtos bem penteados e teve a sorte de achar um lugar logo no primeiro banco depois da porta do meio, justamente ao lado de Leonor, que mora no Abranches. Eram ou foram amigas. Ela sentou e a outra perguntou, com cara de espanto: “Oi Djanira, tudo bem?”. Djanira disse que estava tudo bem e quis saber o motivo da pergunta. A outra respondeu um “nada não”, com os olhos arregalados no ombro direito da amiga. “Depois de velha você resolveu fazer tatuagem?”, perguntou ao mesmo tempo em que justificava o seu espanto.

Djanira disse que foi presente de aniversário de Amanda, a sua neta. “Hoje em dia todo mundo está fazendo tatuagem, Leonor. Eu sempre gostei de coisas modernas”, disse Djanira. Leonor não perdeu o rebolado e disse: “Só se for agora, porque quando a gente era mocinha você implicou comigo porque eu usei minissaia, lembra?”. Djanira se fez de desentendida. E depois censurou: “Para de ficar remexendo o passado! O passado passou e está quieto. O que interessa é o presente”. Mas Leonor deve ter guardado bem no fundo da memória a bronca da amiga nos anos 60, quando ela colocou minissaia pela primeira vez. “A minha minissaia era amarela. Eu usava camisa branca. Eu sempre tive as pernas bonitas. E você disse que aquilo era coisa de biscate”, disse Leonor.

O silêncio imperou entre as duas. Leonor voltou a olhar a tatuagem. Era uma borboleta. “Com tanta coisa bonita para tatuar, você foi tatuar justamente uma mariposa? Mariposa não era o nome que se davam às biscates no nosso tempo?”, perguntou. Aquilo pegou fundo em Djanira. Ela olhou para os lados para ver se alguém ouvia. Claro que todo mundo ouvia. E claro que todo mundo estava fingindo não ouvir. E claro que todo mundo queria saber como a conversa ia terminar. Djanira fez cara de quem não sabia o que fazer. Leonor fez cara de quem guardou por várias décadas a desfeita para devolver com a mesma moeda. Djanira disse: “Isto aqui não é mariposa. É borboleta. E quem escolheu foi minha netinha. E acho que você está sendo desagradável comigo”.

Leonor olhou a rua, respirou fundo e disse: “É que eu também achei que você foi desagradável comigo quando eu coloquei minissaia. E quando eu disse isso, você falou que era uma pessoa autêntica que não ia guardar coisas que pensava. Você disse que quem faz isso é hipócrita”. Djanira decidiu sair da defensiva: “Sabe o que acontece Leonor, é que naquele tempo era tudo diferente. A gente não colocava as pernas para fora. E de repente vem aquela moda, as mocinhas todas colocaram as pernas para fora. Os homens ficaram loucos. Algumas deixavam até a calcinha aparecer, lembra? Eu estudei no Divina Providência. Tive educação religiosa. Eu levei um susto quando vi você com as pernas de fora”. Leonor ficou quieta. Djanira achou que venceu a parada. E tentou arrematar o discurso: “Agora você quer comparar aquilo que passou há cinquenta anos com uma tatuagem inocente no braço. Tenha dó!”.

Leonor respirou fundo, mais uma vez. E falou: “Eu vou dizer o que eu penso. Você não gostou de me ver com minissaia porque todo mundo falava que eu tinha as pernas bonitas. E você achava que as tuas pernas não eram bonitas. E foi por isso que você não usou minissaia”. Djanira ficou calada. Claro que ela ficou com vontade de levantar e ir para outro lugar. Mas ia ser pior. Todo mundo ia reparar. E ia achar que elas brigaram. Mas elas não brigaram. Ela disse: “Você também tem braço. Por que não faz uma tatuagem em vez de reclamar da minha?”. Leonor voltou a olhar a tatuagem de borboleta no braço de Djanira, balançou os ombros e disse: “Eu não. Eu não sou pirata. Para que eu faria isso? Para minha netinha falar que nem a Amanda: Vovó Djanira fez tatuagem de borboleta no ombro direito. Que bobagem”. A conversa acabou ali. As duas foram em silêncio até a Praça Tiradentes. Uma remoendo a censura antiga, e outra remoendo a censura novinha em folha.