“Vocês acham que tudo isto foi mesmo mera coincidência?”

A professora de física Mercedes Sarapalli foi jovem e bonita. Agora, velha e solteira, enfrenta os derradeiros anos de magistério antes de se aposentar. A batalha é dura com um sobrinho-neto problemático. Ela cuida do garoto depois que a sobrinha morreu. O nome dele é Dioni. A mãe gostava de Johnny Cash. E o escrivão não sabia inglês. O garoto é um prodigio de sobrevivência. Quando nasceu, todo mundo achou que ia morrer cedo. Dioni sobrevive. Ele enxerga pouco e seu rosto parece carranca eterna. Mas é esperto. E seu problema de saúde estacionou, ao contrário das previsões. Ainda assim precisa de cuidados.

Mercedes leva o garoto periodicamente ao Pequeno Príncipe. Este é um lado da história. O outro lado é que na idade de Mercedes não é mole conciliar trabalho e assistência ao garoto. Às vezes falta às aulas. O que poderia ser contornado com reposição virou guerra, porque Mercedes não votou em Marilda para diretora e tampouco se dava bem com Sabrina, a vice-diretora. As duas usaram problema real, porém possível de ser superado, para infernizar a velha professora. O inferno de Mercedes eram os encontros de avaliação. Joana, uma pedagoga mulata, foi a primeira e enfiar o dedo na cara de Mercedes: “Seus problemas pessoais não nos interessam. E não use a idade para fazer cara de coitadinha”. Era um jogo pesado.

A professora de geografia, Dorinalda, uma loira gorda, não precisava engrossar, mas engrossou, para fazer média: “A escola já não tem bom conceito e a senhora esculhamba”. Emmanuelle, professora de português, bonita com cara de feliz, fez coro: “Eu acho que a senhora merece nota mínima. Para mim, é o máximo”. Mercedes alegou que com nota mínima não faz progressão na carreira. E a aposentadoria vai ser mixaria – dinheiro para remédio e olha lá. De tanto ser acuada, Mercedes capitulou e deixou a escola. Na última reunião em que foi humilhada, entregou os pontos. Mas deixou no ar uma frase enigmática que a ninguém interessou: “Eu vou embora, mas a vida de vocês não vai melhorar. Escrevam”.

Ninguém escreveu. A mágoa de Mercedes era saber que se fosse da curriola de Marilda, estava liberada para faltar. E desconfiava que além da questão eleitoral, a ira da diretoria tinha origem num comentário que fez sobre ações temerárias de diretora e vice com o parco erário escolar. Ações que colegas à boca pequena julgavam não serem prudentes do ponto de vista do planejamento financeiro. O certo é que a frase – “a vida de vocês não vai melhorar” – foi lembrada semanas depois do jantar. Quando começaram a acontecer coisas. O jantar na casa de Marilda foi organizado para comemorar o expurgo de Mercedes. A diretoria anunciou: “Agora a coisa vai ser de nosso jeito”. Não foi.

Depois do jantar a maiosese desandou. Começou quando denunciaram Sabrina por sumir com 45 mil reais da escola. A culpa caiu sobre Marilda, que disse: “Não fui eu”. Agora as duas tremem de medo. Podem ser processadas por apropriação indébita. O processo é lento, mas fogo brando também cozinha. Diretora não fala mais com vice. Ambiente tenso. A pedagoga Joana tropeçou na calçada e para não arrebentar o rosto se apoiou nos braços. Os dois braços quebraram. Ela ficou parecendo rã no asfalto. O marido pediu licença no emprego para cuidar de Joana que está com os dois braços engessados. Junior, filho de Dorinalda, caiu da bicicleta e bateu de cara no ladrilho: quebrou três dentes e arregaçou o nariz. Na mesma semana, Emmanuele chegou cedo em casa e encontrou Arnaldo na cama com Joelma, sua melhor amiga. A amizade acabou e o casamento quase. O riso de felicidade sumiu do rosto de Emmanuele.

O professor de matemática, Djulian Perdigão, saiu com esta: “Vocês acham que tudo isto foi mesmo mera coincidência?”. Suspeita de mandiga ou maldição. Todo mundo esfriou, inclusive o café. Outros professores se esforçam para lembrar se fizeram algo ruim para Mercedes. O pior é que uma coisa ou outra sempre se faz.