Eu não sabia, mas agora sei que quando pequeno eu era meio hadefóbico. Aliás, hoje não sei, mas acho que toda criança de meu tempo era. Hadefobia é o medo mórbido de ir para o inferno. O medo não é mais mórbido, mas ainda tenho pelo simples fato de que ninguém sabe o que tem do outro lado. Quando estava perto de morrer, Jorge Luís Borges disse: “Finalmente vou descobrir”. Eu não tenho pressa. A criança desenvolvia hadefobia ouvindo adultos. No entanto, não culpo meus avós, padres e professores, que respondiam às minhas indagações sobre o assunto: eles podiam ter feito pior. Fui descobrir isto relendo um livro de James Joyce, um trecho que nem tinha dado muita importância quando li nos anos 70. O livro é “Retrato do Artista Quando Jovem”.

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É claro que Joyce também foi hadefóbico. Está na cara. Basta ler o espaço que deu para o sermão de um pregador sobre o inferno. É de apavorar. E sou grato por não ter encontrado pregador ou professor na minha infância fazendo descrição tão pormenorizada e aterradora do lugar. Peguei trechos para os leitores saberem. Imagine isto dito para uma criança no começo do século passado – é para não dormir a noite. Vamos à questão aromática e física: “O inferno é uma estreita, negra e sórdida prisão fétida, uma habitação de demônios e de almas perdidas, cheia de fogo e de fumaça”. Isto depois de dizer que “o fogo do inferno conquanto retenha a intensidade de seu calor, arde eternamente nas trevas”. Resumindo, uma tempestade de enxofre e chamas que nunca acaba.

A penitenciária de Piraquara é hotel de cinco estrelas perto disso. “Nas prisões terrenas o pobre cativo tem, no mínimo, alguma liberdade de movimento, seja somente entre as quatro paredes de sua cela, seja no sinistro patio de sua prisão. No inferno não é assim. Lá, devido ao grande número de danados, os prisioneiros estão atirados uns sobre os outros, juntos em sua terrível prisão, cujas paredes, diz-se, tem 400 milhas de espessura”. Ou seja, não dá para furar a parede e fugir. Além disso, “os condenados estão tão extremamente apertados e desamparados que estão incapacitados até de tirar do olho um verme que o atormente”. O verme, claro, faz a festa. E o lugar fede pra chuchu.

“O horror desta estreita e negra prisão é aumentado por seu tremendo cheiro ativo. Toda imundície do mundo, todos os monturos e escórias do mundo, nos é dito, correrão para lá como para um vasto e fumegante esgoto. O enxofre também que arde lá, em tão prodigiosa quantidade, enche todo o inferno com seu intolerável fedor; e os corpos dos danados, eles próprios, exalam um cheiro tão pestilento que só um deles bastaria para infeccionar todo o mundo”. Tem mais: “Imaginai um cadáver fétido e pútrido que tenha jazido a decompor-se e a apodrecer na sepultura uma matéria gosmenta de corrupção liquida. Imaginai tal cadáver preso das chamas, devorado pelo fogo do enxofre a arder e a emitir densos e horrendos fumos de nauseante decomposição repugnante. E a seguir, imaginai esse fedor malsão multiplicado um milhão e mais outro milhão de milhões sobre milhões de carcaças fétidas comprimidas juntas na treva fumarenta, uma enorme fogueira de podridão humana. Imaginai tudo isto e tereis certa ideia do horror do cheiro do inferno”.

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O “corpo” fica assim: “O sangue ferve e referve nas veias; os cérebros ficam fervendo nos crânios; o coração no peito flamejado e ardendo; os intestinos, uma massa vermelha e quente de polpa a arder; os olhos, coisa tão tenra, flamejando como bolas fundidas”. Enfim: “Todos os sentidos da carne são torturados; e todas as faculdades da alma outro tanto: os olhos com impenetráveis trevas, o nariz com fétidos nauseantes; os ouvidos com berros, uivos e execrações; o paladar com matéria sórdida, corrupção leprosa, sujeiras sufocantes inomináveis; o tato com aguilhões e chuços em brasa e cruéis línguas de chamas”. Depois de ouvir isso, Joyce ,deixou a capela com as pernas tremendo e cabelos arrepiados. O nome disto é pavor – ou hadefobia.