Alice era bacana. Quieta. Direita. Radamés era cinquentão solteiro que trabalhava no almoxarifado e carregava caminhão de paixão pela dona do Xerox. Casada e dois filhos. Mas Alice ficou viúva e Radamés se encheu de coragem e arrumou jeito de levar papo com ela no cafezinho. Chegou cheio de pompa e circunstância e disse: “Meus pêsames, Dona Alice!” Ela abaixou a cabeça, ameaçou chorar, mas não chorou: “É a vida, Radamés. Um dia a gente está aqui e outro não”. Radamés colocou café no copo e tentou a maior ousadia de sua vida: “Por isso a gente precisa aproveitar melhor a vida, Dona Alice. Eu vou pedir uma coisa para a senhora. Respeite a memória do finado, mas não guarde mágoa no peito”. Ele pensou uma semana para dizer aquilo e finalmente disse.

continua após a publicidade

Depois das palavras ousadas, bateu calorão em Radamés. Ele ficou vermelho. Mas falou o que era para ser falado assim como Dom João VI falou para Dom Pedro I: “Vai que é tua, Pedrão”. Ele foi. O cinquentão teve tempo de ouvir: “É, Radamés. A vida continua. E tenho dois filhos para criar”. Para Radamés, a frase foi a senha. A pista estava limpa e Alice deu sinal verde. Mas não queria dizer muito: a pista estava limpa, mas podia ficar escorregadia. Além disso, Radamés não podia atropelar. Tinha de ir aos poucos. Por isso abaixou a cabeça numa espécie de reverência respeitosa e voltou para o almoxarifado. No almoxarifado arquitetou como faria para chegar de novo e conversar com Alice.

Não podia dar pêsames mais uma vez. Este cartucho foi gasto no cafezinho. Aquilo esquentava a cabeça. O pessoal passava pelo almoxarifado e perguntava: “Aconteceu alguma coisa por aqui, Radamés? Você está com cara esquisita”. Ele concentrado como estivesse para receber caminhão de mercadoria, respondia: “Algumas preocupações, Sr. Gilberto. Nada que não possa ser feito”. O outro disse: “Se precisar ajuda é só falar”. Enquanto Radamés esquentava a cabeça, olhando a mesa do almoxarifado como gerente olha balanço vermelho da empresa, alguém se aproximou na janela de vidro. Ele ergueu a cabeça, olhou e perguntou: “Oi, Dona Alice?”. Ela respondeu: “Me chame só de Alice, Radamés”. A viúva deu um sorriso triste e foi embora.

Radamés exclamou: “Rapaz, ela está no papo!”. No dia seguinte, Radamés, que morava no Boqueirão, pegou ônibus na Praça Tiradentes para a Barreirinha. Para ir com Alice. Encontraram-se na fila do ônibus, ela quis saber o que ele ia fazer na Barreirinha e ele disse que ia ver um compadre que não via há tempo, os dois jogaram no Combate há mais de trinta anos. Tudo lorota. Foi o que veio na cabeça. Radamés, na verdade, jogou no Operário do Pilarzinho. E andou uns tempos no Real. Mas foi há tanto tempo que ele nem lembrava quando. Aquilo deu alivio para ele, porque pensou tanto em que falar com Alice e na espontaneidade, estava falando, tudo com naturalidade e fluência.

continua após a publicidade

Ela disse que o finado era torcedor fanático do Combate. “Coitado. Ele gostava de passear na ciclovia com a camisa tricolor”. Desceram no mesmo ponto e Alice, mais uma vez, adiantou a jogada. “Radamés, o seu compadre fica triste se você não for hoje?”. Radamés, tão decente e honesto que era lerdo. Ele perguntou: “Por que, Alice?”. Ela disse: “Eu queria convidar você para tomar café em casa”. Ele respondeu: “Pensando bem, Alice, eu estava preocupado porque não lembro bem onde o compadre mora. A Barreirinha cresceu muito. Aqui está diferente. Acho melhor eu aceitar o seu café”. E foi feliz da vida. Na casa de Alice ele conheceu os menores. Alice perguntou como as crianças foram na escola, se brincaram na casa dos primos, aquelas coisas. As crianças foram fazer a tarefa de casa e Alice ficou com Radamés na cozinha tomando café. Ela contou sua história, a história do finado, respirou fundo e disse: “A vida continua, Radamés”. Radamés respondeu: “A vida continua, Alice”. Dois meses depois Radamés trocou o Boqueirão pela Barreirinha. Quem o encontrava com cara de felicidade ele respondia: “,Rapaz, você não sabe como é bom ser feliz na Barreirinha!”.