Eu gosto de dar um pulo na Casa Edith, na Praça Generoso Marques. Tudo nela conspira para uma volta ao passado, com classe e elegância – o que não significa que esta dupla cada vez mais rara esteja distante dos homens de hoje. Até a arquitetura da loja e seu assoalho de madeira, dão um toque diferente. Quando fui informado de que os chapéus com fio de lebre importado não estão sendo mais fabricados e que a loja tem os últimos remanescentes, eu comprei um, embora seja complicado ter um chapéu como este porque não é tão barato e seu uso requer certos cuidados. Por exemplo, ele não pode tomar chuva.

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Aí, o impasse: como é que se vai usar um chapéu que não pode tomar chuva numa cidade como Curitiba, em que frio é associado com chuva e umidade? É complicado. Mas é a velha história, os homens têm que aprender com as mulheres que elegância requer certos cuidados. Meu filho perguntou: “Mas você não vai usar nunca este chapéu?” Eu olhei o chapéu e pensei: “Ele está certo. Uma hora eu vou ter que usar”. Aproveitei que na quinta-feira esfriou, coloquei o chapéu e viajei para Maringá. Parecia até provocação: choveu a viagem inteira e eu pensando como ia usar o chapéu sem molhá-lo.

Bem, durante a viagem ele não molhou. E quando cheguei de manhã, na sexta-feira, fazia um frio danado. Peguei táxi e fui para a casa de minha tia Ana. Quando me viu de chapéu, eu percebi que ela ficou fascinada, mas não disse nada. Ela é do tempo em que os homens usavam chapéu. Era item obrigatório. Porque, não sei. Mas era. Com sol ou com chuva, não tinha esquema: chapéu na cabeça. É coisa de um tempo meio distante. Minha tia está com 88 anos. Eu entrei, ela sentou e me disse: “Estou muito bem, viu? Acho que vou até os 90 ou 92 anos”. Eu sentei e fiquei quieto.

Minha tia parece o Mané Garrincha. Que driblava lateral-direitos. Minha tia dribla o tempo. Quando chegou aos 65, disse que ia até os 70. Quando chegou aos 70, esticou o prazo para 75. E um ano antes de completar esta idade, já fazia planos para chegar aos 80. Perto dos 80, disse que se sentia bem, dormia bem e tinha saúde de ferro. Eu já sabia: ela estava esticando o prazo de validade mais uma vez, agora para 85. Ela passou pelos 85 como foguete e agora que está perto dos 90, já está trambicando de novo. Botou mais dois anos só para se garantir. Eu sempre digo para ela: “Eu acho que a senhora vai chegar aos 200”.

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Quando eu digo isso, ela se assusta, mas percebo em seu olhar um brilho de esperança, como se indagasse para si: “Será que dá para esticar até os 200?”. Minha tia tem um desprezo tão grande pela morte que simplesmente a ignora. Só a menção da palavra leva-a a balançar a cabeça como atingida por descarga elétrica e a pronunciar: “Credo!! Deus me livre”. Acho que no íntimo minha tia acredita na imortalidade – quer dizer, numa forma de viver para sempre, embora cada vez mais com a aparência de um maracujá seco.

E lá estava eu sentado diante dela de chapéu na cabeça. Ela me olhou séria: “Com este chapéu, você está parecendo um velho civilizado”. Eu me espantei com a observação. Ela queria dizer que fiquei melhor com chapéu, mas a frase também tinha outro sentido: o mundo já foi mais civilizado, quando os homens usavam chapéus. Embora estejamos numa orgia tecnológica, estamos cada vez menos civilizados. Não era o chapéu que me deixava civilizado, mas ele recordava em minha tia os dias em que o mundo parecia mais civilizado que hoje. Durante o dia eu resolvi os problemas na cidade e à noite eu voltei. Entrei de chapéu no ônibus, sentei na poltrona e depois ao meu lado sentou uma mulher com idade entre 40 e 50 anos. Olhei-a: ela também usava chapéu. O dela era branco. E mais: a dona tinha cara de gente civilizada. E para as pessoas que nos olhavam, parecíamos de outro planeta. Tirei o chapéu, guardei e reconstei na poltrona. Eu fechei os olhos e me lembrei da informação da moça da Casa Edith: as velhas fábricas de chapéu fecharam. Ramenzoni, Cury e Prada. Nomes de um tempo que exala elegância perdida. Como uma civilização perdida. ,p>

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