Uma mulher cantando na Rua Voluntários da Pátria

Eu deixei um edifício na Rua Voluntários da Pátria, onde fui levar documentos para o contador concluir a minha declaração do imposto de renda. O prazo termina amanhã à noite. O contador está cheio de serviço e prometeu fazer tudo em tempo. Saí do prédio impressionado com os velhos edifícios do centro da cidade. Boa parte é mais conservada que os velhos edifícios de São Paulo e Rio de Janeiro. O que tem de prédio velho nos trinques nesta cidade, não está em gibi nenhum. Nem do Capitão América. Este edifício em que fui deve ter mais de cinquenta anos: tudo funciona bem, é limpo, não é deteriorado, com a vantagem de os apartamentos serem maiores e teto mais alto. Em São Paulo, principalmente os velhos prédios, a maioria é doente e decadente. Quando não vira cortiço.

Na calçada, eu ouvi uma voz agradável no outro lado da rua: “Covarde sei que podem chamar, porque não calo no peito essa dor”. Era uma mulher negra. Não parecia mendiga, não parecia louca e cantava. Hoje em dia gente cantando na rua ou é cantor para divulgar o seu trabalho, ou é cantor popular que vive deste proceder ou é maluco – alguns mendigos também cantam. Ela não se enquadrava em nenhuma das categorias. Eu fiquei olhando e ouvindo por alguns minutos: usava óculos, estava vestida modestamente e parecia esperar alguém. Enquanto isso cantava: “Atire a primeira pedra, quem não sofreu por amor”. As pessoas passavam, a maioria ignorava, um e outro fingiam não ouvir, mas ouvia. Como eu.

A voz não era aguda como a de Nicinha, nem rouca e vigorosa como a de Clementina de Jesus, o timbre era semelhante ao de Maria Bethânia – doce e envolvente. Ela não maltratava o clássico de nossa MPB, obra de Ataulfo Alves e Mário Lago. O pessoal da velha guarda com mais de 75 anos já cantou ou ouviu muito esta música. Este é um detalhe curioso porque a mulher com certeza tinha mais de 60 anos – talvez 70, ou mais. E cantava. Por que ela cantava? Eu não sabia. Ela terminou e ficou quieta. Parecia que ficou triste depois que parou de cantar. Como ela parou de cantar e continuou parada no lado oposto da rua, eu achei que não fazia sentido ficar ali na calçada e fui embora. Mas fui embora com a música na memória e uma pergunta na cabeça: por que ela cantava?

Fui para a redação e depois para casa. Passei no mercado do São Lourenço, comprei algumas coisas e ao passar pelo caixa para pagar, a funcionária, conhecida, me olhou e perguntou: “Aconteceu alguma coisa?”. Eu disse que não e queria saber a razão da pergunta. Ela disse: “O senhor está com uma cara estranha”. Então eu fiz um teste. Eu cantei para a garota: “Atire a primeira pedra, quem não sofreu por amor!”. A garota riu meio envergonhada e disse: “Ai, meu Deus! O senhor está apaixonado?”. Eu também ri. Ela estava certa. Era uma possibilidade, como diria meu amigo Ari Silveira. A velha da Rua Voluntários da Pátria estava apaixonada.

Pelo fato de ser velha eu não pensei na possibilidade de ela estar apaixonada: mas podia ser isso. E ela esperava a pessoa, namorado ou marido. Porque, além das três categorias mencionadas acima, só uma pessoa apaixonada ou feliz canta despreocupadamente na rua. Para os apaixonados o resto do mundo não existe. O mundo pertence a eles. Inclusive as ruas. Eu olhei a moça do caixa: “Acho que você está certa, querida”. Eu paguei, peguei as compras e fui para casa. No caminho eu repeti: “Os velhos também se apaixonam!”. Eu me lembrei de algo que há três dias me assombrou. O amigo Miguel Ângelo me mostrou uma foto do estilista Roberto Cavalli, de 73 anos, com a sua jovem namorada, de 26 anos, moça linda – Lina Nilson. A foto me surpreendeu pela disparidade etária e mais pela disparidade física: ele parecia um batráquio e ela uma princesa. Mas, e daí? O amor é de interesse privado e não público. Se eu estivesse na Rua Voluntários da Pátria esperando Lina Nilson, cantaria uma canção italiana: “Se non avessi più te meglio morire”. Acho que ela ia entender. Mas quem estivesse ao redor, acho que não.