Abri a porta, entrei na redação e encontrei Miguel pensativo. Normalmente ele está escrevendo. Eu perguntei o que aconteceu. Ele respondeu: “Faz tempo que não ouço a palavra cafona”. Ele falava sério. Eu concordei: se não falasse ontem a palavra cafona eu ia ficar um período ainda maior de tempo sem ouvi-la. Talvez não ouvisse mais. Desconfio até que algumas pessoas nem saibam da existência da palavra cafona. Ela é sinônimo de brega: brega é expressão aplicada a camada popular enquanto cafona se encaixa melhor na categoria ascendente para a classe A. O novo rico. Está certo que a palavra brega andou nas últimas décadas ocupando este espaço. Mas ele era do cafona. Cafona era o novo rico que queria ser chique. Como não tinha estofo, vestia de forma espalhafatosa, falava espalhafatoso e gostava de ostentar potencial financeiro em todo momento.

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O cafona exibia cordões de ouro, carros novos, mansões, se fosse o caso de o poder aquisitivo do sujeito permitir. Era rico, mas cafona. O brega quase sempre não era rico. Era esculachado. Odair José era símbolo brega; o bicheiro rico era o cafona. O brega era meio tonto e o cafona metido a besta. Eu disse para Miguel que também fazia tempo que não ouvia falar em cafona. E logo pensei em Francisco Cuoco na pele de Gigi na novela de 1971. Gigi ficou rico, mas era cafona. A novela trouxe novidade à época: famosos apareciam interpretando eles mesmos, como Chacrinha, Ibrahim Sued, Zózimo Barroso, Maysa e Beki Klabin, milionária que ficou famosa por namorar o cafona número do Brasil, Waldick Soriano. Ela ainda namorou o médico Hosmany Ramos que virou criminoso e escritor. Cafona arrastava fauna curiosa.

Na novela, três jovens (Cacá, Júlio e Rogério) querem fazer filme radical chamado “Matou o marido e prevaricou o cadáver”, numa alusão ao filme “Matou a família e foi ao cinema”, de Júlio Bressane. Eles contam com a ajuda de uma escritora chamada Lúcia Esparadrapo e de Profeta, guru das praias cariocas. Eu lembro isto porque a onda naqueles anos era sapecar o apelido Cafona em sujeito que mesmo superficialmente se enquadrava no perfil. Foi o caso de Everton Penteado, que por ser cafona passou a ser conhecido como Cafona. Cabelo penteado, óculos escuros, bigodinho fino e costeletas numa época de barbudos, calça boca de sino, paletó e gravata, sapato de salto alto (naquele tempo homem usava) e sorriso enigmático. Cafona não estava aí para o apelido.

Ele ainda reforçava a fama contando aventuras nas quais ninguém acreditava, assumia façanhas que não eram suas e não se preocupava se ninguém acreditava. “Morra de inveja, periferia”, era seu bordão. A impermeabilidade às humilhações e ofensas transtornava os humilhantes e ofensores, cada frase voltava às suas faces como chicote. Por falar em chicote, Francisco Saldanha resolveu quebrar a banca de Cafona, que dizia tomar uísque importado enquanto não chegava perto dos nacionais Drurys e Abbey, marcas em evidência na época. Francisco, conhecido por Chicote, arrumou um litro de cachaça São Francisco, que na época se destacava em qualidade das outras marcas, inclusive na cor dourada, colocou o conteúdo numa garrafa de uísque Chivas Regal, serviu dose dupla para Cafona.

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Cafona bebeu, fez gargarejo com a bebida, ingeriu e disse com convicção estonteante: “Escocês legítimo. Dezoito anos”. Chicote ficou doido, disse que era pinga e mostrou a garrafa de São Francisco vazia para Cafona conferir o “Chivas de dezoito anos” que acabara de tomar. Cafona olhou a garrafa de São Francisco, não se perturbou e disse: “Elementar, Chicote. Colocaram a pinga para envelhecer num barril de carvalho de Chivas Regal de dezoito anos e deu nisso. A pinga saiu de lá com o sotaque escocês. Assim é fácil. Um truque tão perfeito que enganou até um especialista como eu”. E virou as costas e foi embora sem se perturbar. Depois da experiência o pessoal achou que o melhor antídoto contra Cafona era ignorar a existência dele. E sem ter certeza de que ia dar certo. Porque vencer um cafona não é fácil.