Julimar Tonheca foi de bicicleta para Pontal do Paraná no fim de semana, embora os amigos o aconselhassem a ir de ônibus para fazer viagem tranquila, rápida e sem perigo. Tonheca é teimoso. Ele disse que faz bem para o espírito de vez em quando sair pela estrada pedalando até o litoral. A decisão já estava tomada e nada o faria mudar de ideia. A viagem demorou mais de seis horas. E não foi tranquila. Primeiro começou a chover na serra. Depois o pneu furou e ele caminhou centenas de metros com a bicicleta nas costas embaixo de chuva. Não era o tipo de aventura que planejou. Perto de Matinhos, um sujeito de Kombi buzinou várias vezes. Tonheca se enfezou, virou e xingou o cara. “Vai buzinar para a tua vovozinha!”.

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O sujeito abriu a janela e disse: “Estou querendo te dar carona, seu ignorante!”. Era verdade. O cara disse: “Sai da chuva e entra aqui antes que pegue pneumonia”. Tonheca botou a bicicleta na Kombi e o cara que morava em Guaratuba mudou de rota para deixá-lo em Pontal do Paraná. No caminho, Tonheca não sabia onde enfiar a cara de tanta vergonha. O sujeito era bacana. Ele disse que também pedalava por aí e passou por experiência semelhante. Por isso entendia o drama de Julimar Tonheca. Chegando na casa de praia, Julimar Tonheca estava um bagaço. Era quase meia-noite. Ele agradeceu o sujeito da Kombi, guardou a bicicleta, tomou banho quente, comeu alguma coisa e foi dormir. Não tinha força para um chamego com Mônica, a namorada que o esperava.

De madrugada a chuva engrossou. Tonheca teve pesadelo. Epifânio Canabrava foi encontrado morto na cela da penitenciária. O carcereiro o encontrou de manhã na cama, enrolado com a coberta, da qual faltava pedaço. Era o pedaço que Epifânio usou para se estrangular. Aquilo parecia absurdo. No entanto, a hipótese de assassinato estava afastada porque só havia ele na cela e o carcereiro era o único a ter chave. Era um mistério. Para o carcereiro e para o legista. As evidências de suicídio eram fortes, mas o legista não entendia como alguém podia se estrangular. O carcereiro entregou para o médico um maço de cartas que teriam sido escritas por Epifânio Canabrava ao longo do período em que esteve preso.

O médico levou as cartas para casa e leu uma por uma. Eram dezenas. Canabrava foi preso por um crime involuntário do qual por pouco não se livrou com a tese da legítima defesa putativa. Na prisão era manso, calmo, inteligente e se mantinha distante das brigas de grupos e também não se envolvia com os evangélicos. Alguns o tinham por maluco, outros por santo. No entanto, a leitura das cartas mostrava outro homem. Canabrava era gênio do crime. Ele matou dezenas de pessoas. Em cada carta contava um crime em detalhes. O médico não sabia o que fazer com aquilo. Se divulgasse iria criar tumulto, escândalo desnecessário. O cara estava morto. O legista procurou certificar-se de que as pessoas citadas nas cartas existiram. Existiram. E foram mortas como o eventual assassino descrevia.

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Julimar Tonheca acordou de manhã com sensação ruim de toda pessoa que não dormiu bem. Ele ficou dois dias em Pontal do Paraná pensando no pesadelo. Depois retornou para Curitiba, desta vez tomando o cuidado de colocar a bicicleta no bagageiro do ônibus. Mônica não gostou do passeio. Tonheca não descansou e voltou ensimesmado. Assim que encontrou os amigos na redação, ele me procurou para contar o pesadelo: “O estranho é que acordei com uma dúvida: será que o sujeito matou mesmo aquelas pessoas ou ele era uma espécie de escritor e escolheu crimes que não foram solucionados, assumindo a autoria e se promover? Para ficar como um grande criminoso para a posteridade? Afinal, decidiu que ia morrer”. Eu disse para ele que era um belo enigma. E que ele poderia resolvê-lo escrevendo um livro. Ele teria tempo para encontrar uma resposta. E para incentivá-lo, na manhã seguinte eu lhe dei um livro com uma história semelhante a do pesadelo, escrita em 1969 por Colin Wilson. Que, talvez, tenha tido o mesmo pesadelo de Julimar Tonheca.