O ensaísta espanhol José Ortega y Gasset, como todo filósofo, tem uma profusão de frases espirituosas, algumas boas, outras nem tanto e algumas que podem ser colocadas na categoria de tanto faz, como tanto fez. Uma delas é esta: “Tudo no mundo é estranho e é maravilhoso para um par de pupilas bem dilatadas”. Ele não se referia aos maconheiros e tampouco às pessoas que fazem exame de vista.
Nicolau, que era reitor numa universidade particular, pensou nisto quando deixou a casa de sua tia Anastasia na noite de ontem. Ele chegou de manhã com a sensação de que se ficasse com as pupilas dilatadas, sem usar substância psicodélica, veria alguma coisa estranha ou maravilhosa. Aconteceu a primeira. Uma coisa estranha.
Eram seis horas da manhã, quando Anastasia apareceu na porta. Ela demorou para abrir o portão porque está velha, encolheu bastante e seus movimentos são lentos. Como era cedo, Nicolau abraçou a tia e foi para o quarto de hóspedes dormir mais um pouco para se recuperar do sono desconfortável no interior do onibus. Quando acordou três horas mais tarde, o café estava à mesa. Nicolau não tomou porque achou que tinha alguma coisa podre no café.
Ele olhou e disse: “O café está podre”. Anastasia disse que Nicolau estava louco porque café não apodrece na xícara. Ele disse que era o pão e ela retrucou que comprou o pão na noite anterior. Ele disse: “Tem coisa podre aqui”. Anastasia se ofendeu porque tem mais de noventa anos e pensou que ele era irônico com ela. Para não arrumar confusão, Nicolau saiu, almoçou fora, por causa do cheiro podre na cozinha de Anastasia e quando voltou no final da tarde o cheiro continuava.
Ele disse mais uma vez: “Tem coisa podre aqui”. Abriu a geladeira que não funcionava direito. Não tinha nada podre. Abriu o armário e quase caiu duro. Havia uma massa disforme cheia de vermes. Ele mostrou para a tia: “Não falei?”. Anastasia arregalou os olhos: nunca vira tantos vermes na sua vida. O armário era um universo habitado por um número incontável de vermes asquerosos.
Nicolau ajudou Anastasia a limpar o armário enquanto ela contava que fazia uma semana que procurava um quilo de carne que comprou no açougue. “Acho que coloquei no armário, pensando que colocava na geladeira”, disse candidamente. Ela agradeceu Nicolau por ter o faro apurado, além de pupilas dilatadas para ver coisas estranhas e maravilhosas.