Uma das principais inovações dos escritores que participaram ou gravitaram ao redor da geração beat foi o uso de títulos estranhos para os seus livros. Basta pegar alguns, para perceber que em matéria de títulos, os caras chegaram arrasando. Vejamos os autores, incluindo alguns que embora tecnicamente não sejam beats, mas entraram na festa da contracultura. “O mar é meu irmão” (Jack Kerouac), “Almoço nu” (William Burroughs), “Uivo” (Allen Ginsberg), “Ao sul de lugar nenhum” (Charles Bukowski) e esta maravilha: “Zen e a arte de manutenção de motocicletas” (Robert M. Pirsig). Este último escrito por um sujeito que antes de virar filósofo foi internado em 1960, aos 17 anos, em instituições psiquiátricas, nas quais por pouco não foi eletrocutado de tanto choque que tomou. Ele era superdotado, com QI fora do comum.

continua após a publicidade

Eu não sou especialista em literatura norte-americana dos anos 50. Por isso, quando aquela figura serena de cabelos e barbas brancas apareceu num corredor entre prateleiras de sebo perguntando se eu conhecia “A estranha máquina de fazer linguiça”, de Michael Harvey, de San Francisco, eu pensei que fosse da geração beat. Ele confirmou e insistiu animado: “Você conhece?”. Eu disse que não: “Nunca ouvi falar”. O cara ficou decepcionado. Ele disse: “Rapaz, faz tempo que procuro este livro e não encontro”. Eu perguntei sobre o que era. Ele disse que era um livro meio filosófico, mas também retrato de uma geração. Eu pensei: “Filosófico e retrato de uma geração é uma definição muito vaga”. “Que geração?”, eu perguntei. “Não sei”, disse ele.

O sujeito disse que se chamava Nivaldo Carvalho Pinto. Ele tinha a minha idade. E não parecia idiota e tampouco embusteiro. E falava com fluência sobre autores beats. Não só deles, como de outros dos anos 50, como Jerome David Salinger, que fizeram sucesso com livros com títulos também estranhos, como os clássicos “Um dia perfeito para Peixe-banana” e “Pra cima com a viga, moçada!”, também conhecido por outra tradução em português como “Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira”, embora se alguém chegar numa construção civil no Brasil e falar em cumeeira é bem possível de os carpinteiros além de não entenderem, responderem com cara feia.

Enquanto Carvalho Pinto discorria com fluência sobre estes livros, personagens e suas histórias eu divaguei. Eu pensei no título que ele procurava – “A estranha máquina de fazer linguiça”. E recordei que quando eu era pequeno eu adorava linguiça, mortadela, guaraná, queijo e goiabada – estas coisas não eram abundantes na época. Não se comprava. Eram feitas em casa. Minha avó era linguiceira de primeira. Ela fazia linguiça com tripas de porco que eram lavadas em água fervente e depois levadas ao varal para secar. E o varal ficava com aquele cenário surrealista de tripas de porco secando ao sol. Aliás, belo título para um livro beat: “Tripas de porco secando ao sol num dia quente”. Qualquer hora eu vou usar este título, antes que algum aventureiro se aproprie dele.

continua após a publicidade

Eu saí de meus pensamentos distantes quando ouvi Carvalho Pinto falar de um obscuro autor argentino, Angel Bermondes Garcia, que escreveu um livro chamado “A máquina de aspirar pó”. Eu tentei fazer graça e perguntei se era biografia de Maradona. Carvalho Pinto não gostou de meu comentário, me olhou feio e em silêncio virou-se e foi embora. Eu procurei esquecer a conversa sem noção, peguei um livro de Joseph Conrad, bela edição de “Coração das Trevas” com a capa vermelha por preço razoável e na hora em que fui pagar o dono do sebo me perguntou: “O que você ficou falando com aquele senhor que sempre vem aqui?”. Eu respondi que falávamos de títulos de livros. O homem respondeu que Carvalho Pinto sempre aparece por lá e fica perguntando para os fregueses se eles conhecem livros cujos autores e títulos ninguém nunca ouviu falar. Disse mais sobre o tipo. “Ele era um homem muito inteligente, com um QI fora do norm,al. Mas o internaram num sanatório, ele levou tanto choque que ficou maluquinho”.