Tomando suco de melão com um velho amigo na Galeria Suissa

Eu gosto de ler biografias. Eu me lembrei disto quando o Cahuê Miranda chegou todo faceiro na redação e me mostrou um livro grosso e disse: “Estou lendo”. Era o primeiro volume da trilogia escrita por Isaac Deutscher sobre o revolucionário russo Lev Davidovicht Bronstein, também conhecido por Leon Trotski. O primeiro volume é “O Profeta Armado”. Um dos mais belos trabalhos de reconstrução da vida de um sujeito feito no século passado. E de quebra o sujeito não precisa ler mais nada sobre a Revolução Russa, para entender o fenômeno. Têm ainda outras biografias maravilhosas como as de Sigmund Freud, uma feita por Ernest Jones e outra por Peter Gay. Sem contar as duas magistrais biografias escritas por Richard Ellmann, sobre Oscar Wilde e James Joyce.

No Brasil existem pelo menos dois grandes escritores de biografias. Ruy Castro reconstruiu de forma magistral as vidas de Garrincha (“A Estrela Solitária”) e Nelson Rodrigues (“O Anjo Pornográfico”). E Fernando Morais trouxe à tona a vida de Assis Chateaubriand, em “Chatô, o Rei do Brasil”. Coisa de louco. Mas existem biografias e biografias. Na terça-feira à tarde, calor de derreter granito, sou informado de que um amigo me espera na portaria do jornal. Desci. Era o velho Laércio Souto Maior, que conheço desde o início dos anos 70 e que fazia tempo que não o via. Laércio foi colega de faculdade e meu editor no Diário do Norte do Paraná, em 1977. Fomos tomar um suco de melão na Galeria Suissa, perto do jornal.

Nos anos 60, Laércio fora mentor intelectual da esquerda em Maringá. E por conta disso foi preso várias vezes nos anos de ditadura militar, a última em 1975, quando o visitei no presídio do Ahu em companhia do juiz Francisco de Paula Xavier Neto, que era nosso professor no curso de Direito e que veio a ser presidente do Tribunal de Justiça do Paraná. Laércio se formou em Direito, virou advogado e no começo dos anos 80 veio para Curitiba, onde reside até hoje. Ele escreveu vários livros. E há pouco tempo publicou pela editora Banquinho um livro de poemas intitulado “Será que é poesia?”, edição limitada, belamente confeccionada, de 200 exemplares, numerados. Ele me veio trazer um exemplar, o de número 27.

Está certo que de poeta e de louco, todo mundo tem um pouco. Popular ou erudito. Mas eu não imaginava que Laércio escrevia poemas. E escrevia desde o começo dos anos 60. Não foram tantos porque ao longo de 55 anos resultou num livro de 80 páginas. Se levar em conta que quase 20 páginas são de apresentações, sobram 60 páginas. E se contar que alguns poemas têm duas ou três páginas, não totaliza um por ano. Quando eu cheguei em casa à noite eu li o livro e me surpreendi com uma característica. Ele me pareceu uma biografia emotiva ou uma forma poética de reconstruir uma trajetória de vida. Estão ali o amor pelo país, pelas mulheres, pelos amigos e reflexos de suas angustias com um país que se recusa em se transformar.

Ali encontrei o que foi por sua cabeça nos meses em que esteve na prisão: “Os momentos passados na prisão valem uma eternidade. Só a prisão nos faz ver em toda plenitude. A importância, o valor e a beleza sem par da liberdade”. Parece óbvio. Mas muita coisa parece óbvia e só percebemos a sua importância quando somos privados dela. Aí a conclusão mais simples tem força de poema. Tem poema dedicado ao amigo Sérgio Rubens Sossella, sucinto e cheio de imagens surrealistas como a letra de uma música tropicalista: “La vai o cowboy Sossella. Com seu cavalo alazão. Atravessando nuvens, tempestades. Passando em disparada. Ao largo de estrelas, planetas. Satélites, cometas. Numa cavalgada alucinada. Em direção ao faroeste sideral”. E assim por diante. Uma leitura curiosa, agradável e que joga na memória cenas de uma vida inteira. Quando terminei o livro fiquei com a sensação de que acabara de ler uma biografia sentimental. Sem dados e datas, mas refletindo momentos tensos e intensos pelo qual o amigo Laércio passou. Ao final fiquei feliz por ter gostado. É o que a gente espera de um livro. Ainda mais quando o autor é nosso, amigo.