Todo homem é meio Jece Valadão

O nome dele era Gecy Valadão, mas entrou para a história do cinema nacional como Jece Valadão. Uma espécie de Jack Palance brasileiro. Ou Lee Van Cleef. Cafajeste e durão. Gostava de ser conhecido por homem mau. Valadão nasceu no norte do Rio e morreu no centro de São Paulo. Num hospital, claro, aos 76 anos. De velhice. Mais de cem filmes no currículo. Encarnava o mal com tanta naturalidade que, em 1955, fez “Rio 40 Graus” e ganhou o prêmio por seu papel de malandro. Os organizadores desconfiaram que ele era bandido de verdade. Para levar a estatueta teve que provar que era malandro de araque.

Se a fama de malandro estava consolidada, Jece Valadão a jogou nas alturas quando fez, em 1962, o filme “Os Cafajestes”. Daí em diante não precisou provar mais nada: era mau, cafajeste, durão e machista. Papel de bandido era com ele. Para piorar, era direitista convicto. Não do tipo que lia Adam Smith. Mas daqueles ligados aos grupos de extermínio do Rio. Para se aperfeiçoar no assunto – para os filmes – acompanhou execuções do Esquadrão da Morte. Quem conta é ex-delegado do Dops que revelou a afinidade de Valadão com os torturadores de esquerdistas nos anos 70. No fim da vida, ele se arrependeu, virou evangélico.

Eu me lembrei de Jece Valadão porque li uma crônica de João Ubaldo Ribeiro na qual ele dizia que em certo ponto era como o imortal cafajeste. Só entrava em alguma coisa para ganhar. Valadão resolveu ser candidato a deputado em 1982 e chegou todo pimpão para o escritor e disse: “João, só entro numa parada para ganhar, que não entro em nada para perder”. Pose de machão, valentão e de quem não tem medo de enfrentar desafio. Entrou, disputou e perdeu a eleição. Mas não perdeu a pose. Que durão é assim. E que ninguém tirasse sarro. Na hora eu fechei o livro e me lembrei da frase da Rita Lee: “Toda mulher é meio Leila Diniz”. É uma generalização. Ela diz “meio” – um pedacinho.

Neste aspecto, pensei, então não seria exagero dizer que todo homem é meio Jece Valadão. Não quero dizer que o sujeito vai apoiar a tortura ou acompanhar execução de bandido. Mas o que tenho ouvido de gente sensata dizer que “bandido bom é bandido morto”, não tá no gibi. Um amigo me disse ontem que “lugar de traficante é no cemitério”. Dezenas de outros que foram esquerdistas nos anos 70, hoje estão à direita de Jair Bolsonaro. E fazem “fiu-fiu” para os militares voltar. Sem contar a mania de levar vantagem: todo mundo quer levar vantagem. Que nem Valadão. Eu fiz a observação para um amigo, e ele com a maior panca de Jece Valadão disse que também pensava assim e emendou: “Eu evolui e você não!”.

O “valadonismo” se manifesta em todos os setores: da segurança social ao esporte, da política à relação com o mulherio. Tem muito Brucutu por aí. Ao ponto de eu não saber mais o que é onda e o que é verdade. Estava num azulão para o Boqueirão. Um cara estava sentado quando o amigo chegou e disse: “Rapaz, você dispensou a Claudia, aquela gatona? E arrumou duas barangas? Que é isso?”. O sujeito estava escandalizado. O outro não se importou: “A gatona tava saindo caro. Era bonita, mas não lavava, não passava e quando chegava de noite não tinha comida. Assim não dá! Casa limpa faz parte do riscado. Tô com a Jandira e a Etelvina. Uma passa e lava e outra cozinha e limpa a casa. Tô no lucro”. Fiquei estarrecido.

Mais: o sujeito tinha cara de Jece Valadão o que me levou a acreditar no arranjo. O outro perguntou: “E de noite?”. O Valadão do Boqueirão disse: “Uma noite é da Jandira e a outra da Etelvina. No fim de semana dou uma banda por aí”. Se ele blefava, não sei. Mas o fato de falar aquilo era a mais pura encarnação do espírito de Valadão. No melhor estilo cafajeste. Quando ficar velho ele vai se arrepender, virar evangélico e ainda achar que vai para o céu. Afinal, o bom cafajeste até muda de opinião se for para levar vantagem.