Se ela teve uma paixão na vida foi a viola

A velhinha sorridente que morreu domingo sob o nome de Inezita Barroso e ficou famosa por popularizar “Marvada Pinga”, sucesso musical dos anos 50, é apenas a ponta visível de uma das mais notáveis brasileiras do século 20. A trajetória de Ignez Magdalena Aranha de Lima que encerrou o ciclo vital quatro dias depois de completar noventa anos foi cheia de lutas, conquistas e música – “música de raiz”, como gostava de dizer. Inezita fez de tudo desde que começou a cantar profissionalmente em 1951, aos 26 anos, depois de se formar em Biblioteconomia na Universidade de São Paulo. Começa por aí. No início dos anos 50 se alguém dissesse que ia estudar Biblioteconomia ninguém ia entender. Poucos sabiam o que era. Inezita esteve na primeira turma do curso na USP.

Inezita era linda, cheia de talento e desde os sete anos tocava viola e violão. Gostava de viola caipira quando mocinhas de família gostavam de piano. Se ela teve uma paixão na vida foi a viola. Em 1946, aos 22 anos, se casou com o advogado cearense Adolfo Cabral Barroso, de onde veio o sobrenome artístico, sugestão do sogro. Durante uma visita a Recife ela conheceu o coco, a embolada, o baião, o xote e outros ritmos nordestinos. A veia artística aflorou e ela decidiu fazer disso uma atividade profissional, incentivada pelo marido. Mas quem não gostou foi a família aristocrática e conservadora, tradicional família quatrocentona de São Paulo. Inezita trocou marido e família pela música. Mais: provocou escândalo quando decidiu se desquitar num tempo em que isto significava jogar o nome na lama. “Quando dei a notícia para a família, durante um almoço no qual estava a minha avó e até um bispo, foi um verdadeiro desbunde”, confessou ela mais tarde.

Inezita foi em frente. De cara quebrou dois tabus na sociedade brasileira: virar artista e ser desquitada. Dois caminhos que mulheres “direitas” evitavam. Como era cantora profissional, tinha independência financeira. E nunca mais se casou. Inezita esteve no Teatro Brasileiro de Comédia, fez shows na Boate Vogue do Rio de Janeiro, era amiga de Paulo Autran e Renato Consorte, frequentava rodas boemias da São Paulo dos anos 50, cantou para o ator italiano Vittorio Gassman que quis levá-la para a Europa, ficou amiga da fadista Amália Rodrigues, foi atriz da televisão que começava a engatinhar no Brasil, fez cinema e ganhou o Troféu Saci por seu papel em “Mulher de Verdade”, gravou mais de 80 discos, foi a primeira a fazer sucesso com “Ronda”, um dos maiores clássicos da música “dor de cotovelo” brasileira composta por Paulo Vanzolini.

Sem contar que abiscoitou os troféus Roquete Pinto e Guarani. Era moça fina e talentosa, que não ligava quando olhavam torto para a desquitada. Afinal, era com seu talento que sustentava a filha, Marta Barroso Macedo Leme. Sobre Inezita desde cedo os homens aprenderam que era bonita, alegre, sorridente, inteligente, mas nunca aceitou que lhe colocassem cabresto de nenhuma ordem. No final dos anos 50, Inezita subiu em cima de um Jipe Willys e percorreu mais de 6 mil quilômetros pelo Brasil afora recolhendo composições, assim como fez Mário de Andrade, algumas décadas antes. Estava nascendo mais uma de suas múltiplas atividades: folclorista. Quando o Brasil e o mundo mergulharam na onda da guitarra elétrica e não havia espaço para o violão, Inezita chegou a queimar o seu violão na churrasqueira de casa. Mas não desistiu.

Então ela abriu restaurante onde cantava as músicas “de raiz”. Em 1980, criou uma trincheira na guerrilha em defesa da cultura brasileira: o programa “Viola, minha Viola”, na TV Cultura. Ela empurrou a carreira de Pena Branca e Xavantinho e descobriu a fabulosa Helena Meirelles bem antes da revista americana Guitar Player. A última entrevista de Patativa do Assaré foi concedida a ela. A mulher que morreu ontem foi bonita, valente, criativa e talentosa. Uma das maiores da história brasileira, reconhecida com título de doutora honoris causa em folclore e arte digital pela Universidade de Lisboa. Inezita mal se foi e quanta saudade ela nos traz.