“Que foi coroa? Tá me estranhando?”

O pai de Alaor morreu e ele arquivou o sonho de ser peão boiadeiro. Teve que trabalhar. Como não arrumou emprego em Ivaiporã, veio para Curitiba ser segurança de supermercado. Alaor estranhou a cidade, a falta da comida da mãe, a solidão das pessoas nesta capital, garotas dentro da noite e os humilhados do parque com os seus jornais. Estranhou a frieza das pessoas e há semanas estranhou o frio. “Cidade mais fria do mundo, isto aqui parece a Rússia”, disse para Vinagre quando os termômetros chegaram perto de zero. Alaor confidenciou que não parava de se surpreender. Vinagre falou para Alaor: “Pode se preparar meu chapa! Você vai se surpreender com mais coisas. Esta cidade é cheia de surpresas e as capitais estão cheias de pessoas malucas que aparecem de repente como uma bomba”.

Vinagre é magro feito uma mata-junta, astuto feito corvo e usa roupas pretas como a farda de Alaor, além dos penduricalhos de metal: “Sou fã de Iron Maiden, Metallica e tudo que é rock pesado”, sempre diz com orgulho. Alaor desconfiou que Vinagre tirou onda de filósofo para o seu lado ou estava querendo assustá-lo ao falar de mais surpresas. Mas devia ter levado a sério as palavras de Vinagre, porque dois dias depois aconteceu mais uma surpresa. Um gordinho entrou de manhã no mercado com as mãos na cintura e panca de quem procurava confusão. Vinagre fez gesto com a cabeça para Alaor que se aproximou. Vinagre disse: “Olha o tipo? Panca de quem procura encrenca! Provavelmente vai armar confusão no mercado”.

Confusão, no caso, quando o sujeito troca etiqueta de produto ou pega etiqueta de outro mais barato e tenta passar no caixa, sem contar os que enfiam produto caro embaixo da blusa e compram bolacha de 1 real ignorando a existência de câmeras filmando todo mundo sorrindo, chorando ou fazendo cara feia. Alaor, disfarçadamente, seguiu o gordinho, tão disfarçado que o mercado inteiro percebeu. E o gordinho não gostou. E se tinha plano de natureza larápia, arquivou, mas nem por isso ficou satisfeito. Depois de alguns minutos para lá e para cá, o gordinho resolveu sair do mercado e não deixar barato. Perto dos caixas, um velho olhou porque o gordinho era tipo ostensivo e provocador.

O gordinho invocou: “Que foi coroa? Tá me estranhando?”. O velho se assustou e não disse nada. O gordinho apimentou porque queria confusão para atrair Alaor: “Se não tá me estranhando tira os olhos de mim!”. Alaor percebeu o gordinho aprontando e chegou macio, seguindo normas que aprendeu num curso intensivo para segurança e que na prática não serve para muita coisa: “Escuta aqui rapaz, se você procura encrenca, o lugar não é aqui!”. Foi aí que o bicho pegou: “Que foi urubu? Olha direito para mim!”. Alaor não gostou. Aquele negócio de urubu deixou-o fulo da vida. Ele também arrepiou: “Escuta aqui rapaz, seu gordinho duma figa, se você entrou aqui para arrumar confusão, pode cair fora!”.

O gordinho não caiu fora e ficou furioso: “Gordinho é tua mãe, urubu! Eu sou menina. Não sabe diferenciar homem de mulher, palhaço?”. Alaor domava cavalo e subia em cima de touro bravo, mas aquela o pegou de jeito. Ele olhou o gordinho. Achou que era meio estranho, mas não desconfiou que fosse mulher. Por aquela não esperava. O gordinho percebeu que o segurança perdeu o rebolado e abusou. Alaor, para não perder a autoridade e o emprego, pegou o gordinho pelo braço, enquanto dizia: “Homem ou mulher, gordo ou magro, feio ou bonito, você está arrumando encrenca e vai cair fora. Ou sai ou chamo a polícia”. A menção do nome polícia exerceu efeito apaziguador. O gordinho foi para fora do mercado e quis sair no braço com Alaor. “Agora que estamos aqui, vamos resolver isto no tapa, urubu! Quero ver se você é mesmo bamba”.

Os últimos resquícios de cavalheirismo falaram alto. Alaor disse: “Se você fosse um gordinho eu te quebrava de pau, mas como é uma gordinha eu respeito. Eu não bato em mulher”. Virou as costas e voltou para o mercado furioso dentro da farda negra. “E ainda por cima virei urubu. Era o que faltava!”.