O velhinho de 70 anos, cabelos brancos cuidadosamente penteados, bigodinho curto aparado, casaco marrom com pulôver por baixo, calça marrom e sapatos marrom. Ele me espreitava com seus olhinhos miúdos e matreiros. Eu percebi e pensei: “Este velhinho está de galeto pro meu lado”. Pensei mas não disse. Eu estava conversando com alguns amigos e o velhinho só de campana. Quando os caras foram embora, ele se aproximou e disse todo manhoso: “Eu leio a sua coluna. E gosto dela”. Eu fiquei desconfiado, mas respondi: “Obrigado. Sempre fico feliz em ouvir isso”. O velhinho olhou para os lados, baixou a voz e perguntou: “Se eu te contar uma história que aconteceu comigo, você publica?”.

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Eu disse que dependia da história. Ele foi adiante e pediu para em caso de eu achar interessante a sua história, usar nome fictício para os amigos não desconfiarem dele. Eu disse que ia usar o nome Anacleto. Ele não gostou: “Esse é feio. Parece dupla sertaneja Ana e Cleto. Não tem outro?”. Ele pediu para usar um nome bonito: “Que nem nome de artista francês que faz o meu gênero”, disse faceiro. Eu achei o fim da picada, mas não me abalei. E sugeri: “Pode ser Jean Paul Pfenniger?”. Às vezes eu leio um nome que fica martelando na minha cabeça. Foi o caso de Pfenniger. Ele abriu um sorriso largo: “Gostei. Este é bacana. Combina perfeitamente com a minha pessoa”. Definida a questão do nome, fomos para o essencial, que era a história.

Uma coisa eu tinha que reconhecer, Jean Paul era honesto porque foi logo dizendo: “Eu sou um velhinho safado. Mas sou safado consciente. Fui sempre assim”. E por ser consciente de sua safadeza ele nunca se casou. “Eu não queria ser traído, que é muito ruim. E também não queria trair, que dá muita confusão. O jeito foi ficar solteiro”, confessou. Achei a história interessante. Mas ele disse que a história não tinha começado. Era a que deu origem a sua tomada de consciência. “Traição é questão de tempo. Duas pessoas juntas estão entre a traição futura e o tédio. E como ninguém gosta de tédio, você já viu, né?”, disse ele, com a autoridade de quem atua no ramo há pelo menos cinco décadas.

Tudo começou assim: “Na metade dos anos 60, eu morava em Arapongas e fui para o Guarujá numa excursão”, contou ele. Estava no ônibus que ia partir de noite e ficou observando uma moça que era noiva se despedir do noivo no lado de fora. Ela ia acompanhar a irmã mais nova que ia com a excursão, para proteger a garota. Eles beijaram, se despediram apaixonados, a irmã entrou, a moça, Edinalva, foi a última a entrar. E quando entrou, sentou ao lado de Jean Paul. “Em Londrina a gente conversava como velhos amigos. Era noite, luz apagada no ônibus, a gandaia acabou cedo e em Cornélio Procópio a gente se beijava como velhos amantes. Antes de chegar em Sorocaba, não havia segredos entre nós”, disse ele.

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E não ficou nisso: “Nos três dias em que ficamos no Guarujá, fizemos pré-temporada intensiva para a lua-de-mel. Edinalva voltou aprovada com louvor num curso alucinante de jogos de alcova”, contou. O mais irônico na história foi que Jean Paul achou que ao chegar em Arapongas, Edinalva fosse acabar com o noivado e ficar com ele. “Nada disso”, contou. “Ela me disse que gostava do noivo, que ia se casar com ele, mas sabia que para alguns homens, como eu, ela não sabia dizer não”, disse Jean Paul ainda hoje abalado pelo abandono. “Quando o ônibus chegou em Arapongas, na frente da praça, o noivo estava lá, de bicicleta, esperando a noiva. Ela desceu sem se despedir de mim, foi lá, abraçou e beijou o noivo”, contou ele com cara de quem deve ter ficado humilhado e ofendido.

Essa foi a história de Jean Paul e Edinalva. Ele me olhou e perguntou: “Qual de nós foi mais safado? Eu ou ela?”. Eu disse que não sabia. Ele disse: “Os dois. Eu sabia que ela tinha noivo e não a respeitei. Ela sabia que era noiva e não o respeitou. Nós dois fomos safados”. E arrematou: “E pessoas safadas não podem se casar”. Jean Paul estava sério, quase furioso. Ele fez um movimento com os l&a,acute;bios, movendo a dentadura, e se afastou sem dizer mais nada.

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