Eu conheci Sarandi assim que me mudei para Curitiba. Achei o nome estranho para uma pessoa embora não seja para uma cidade. Mas como tinha outras preocupações e aquilo não era da minha conta, eu não disse nada. Mas sempre aparece alguém que invoca. E, pior, tem quem quer tirar sarro. Estes não apareciam com frequência por um bom motivo: poucos sabiam que Sarandi se chamava Sarandi, porque todos o conheciam por Biscoito. Eu também passei batido por este apelido porque já conheci outros piores como, por exemplo, Cabeção. Como sempre tem engraçadinhos que querem tirar sarro, um destes chegou para Sarandi e perguntou se ele não se incomodava em ser chamado de Biscoito. Sarandi tinha vergonha do nome, mas não do apelido de Biscoito. Muita gente, aliás, gosta de biscoito.

continua após a publicidade

O engraçadinho disse: “É que todo mundo pode falar por aí que andou comendo o Biscoito”. Sarandi disse que ninguém falava isso. O engraçadinho riu e perguntou: “Por que não falam, se isto é óbvio?”. Sarandi explicou de forma gestual para o engraçadinho porque ninguém falava aquilo: ele deu um gancho de direita de baixo para cima no queixo do cara, que se levantou, sem brincadeira, meio metro do chão, fez curva no ar e caiu de costas dois metros longe do lugar em que estava. Sarandi disse depois que o cara se estatelou no chão: “Agora entendeu porque ninguém fala isto?”. Sarandi foi borracheiro, puxava ferro e seus braços eram mais grossos que minhas pernas. Quando vi o engraçadinho no chão eu pensei na hora do que escapei se tivesse me dado um daqueles ataques espirituosos e dito a frase que o outro disse.

Acho que Sarandi teria arrancado minha cabeça do ombro, porque sou mais pesado e acho que a barriga e o resto do corpo não iam acompanhar a trajetória que a cabeça do engraçadinho fez, levando o corpo consigo. Eu não fiquei amigo de Sarandi, mas também não fiquei inimigo. De vez em quando eu o encontrava e nem me recordo agora o que a gente conversava. Mas ontem depois do trabalho eu passei pelo Largo da Ordem e me encontrei com ele. Ele me convidou a tomar cerveja. Quase não o reconheci: quinze anos envergam a coluna de qualquer um, aumentam a protuberância abdominal e deixam brancos quaisquer cabelos, no caso otimista de eles ainda existirem. Sarandi não era um velho, mas não era mais o jovem que conheci.

Ele me contou com certo orgulho que ninguém mais o chamava de Biscoito. Pensei mas não falei que Biscoito é apelido perigoso: além de convite a brincadeira do tipo da que o engraçadinho fez há quinze anos, biscoito também pode ser interpretado como ato sexual feito pela segunda vez. O casal fez coito e partiu para um bis. Que é o biscoito. Eu dei um gole na cerveja e perguntei temeroso, porque os anos passaram, mas Sarandi continuava com o mesmo humor. Qualquer frase errada poderia acabar em agressão. “Como te chamam agora, Sarandi?”. Ele disse: “Alguns me chamam de Broder. Outros de Velho. Tem os que me chamam de Cara. Eu devo ter uns sete ou oito apelidos, mas Biscoito não está entre eles”. Eu resolvi ousar: “Espero que não se ofenda. Mas de onde teu pai tirou o teu nome?”. Sarandi explicou que o pai dele morava em Sarandi, perto de Marialva. “Meu pai gostava do nome Marialva”, disse.

continua após a publicidade

Eu não comentei que trabalhei com uma mulher bonita chamada Marialva. Eu perguntei: “E daí?”. Sarandi contou que quando a mãe dele estava grávida, as vizinhas disseram que pelo formato pontudo da barriga, ia ser menina. Elas não erravam. O pai de Sarandi disse que o nome da menina ia ser Marialva. Sarandi me olhou esperando que eu dissesse alguma coisa e eu não disse. Por fim ele respirou fundo e acrescentou: “Como não nasceu menina, a minha mãe perguntou para o meu pai qual ia ser o nome da criança. Meu pai era grosso e não gostava de perder parada. Ele disse: já que não pode ser Marialva, vai ser Sarandi. Foi assim que eu virei Sarandi”. Acho que por isso ele se mudou para Curitiba. Por aqui ninguém acha engraçado um cara se chamar Sarandi. Mas em Sarandi pode soar um pouco engraçado.