Quando vi parte da torcida ontem na Fonte Nova, em Salvador, torcida que foi ver França e Suíça pela Copa de 2014, eu me lembrei da expressão “Oropa, França e Bahia”. Havia franceses, havia suíços, mas havia baianos e boa parte não escondia preferência pela França. Uma França que está no imaginário brasileiro há muito, porque os franceses sempre tiveram até meados do século 20, grande influência na formação cultural e até na vestimenta e hábitos dos brasileiros. Até o final do século 19, sujeito que não sabia falar francês era considerado ignorante. Muitos escritores pátrios escreviam livros em francês. Era chique.

continua após a publicidade

Tanto que surgiu nos confins de nossa formação a expressão: “Oropa, França e Bahia”. A expressão aparece em “Macunaíma”, livro modernista usado para definir o caráter brasileiro: “Meu genro: você carece de casar com uma das minhas filhas. O dote que dou pra ti é Oropa, França e Bahia. Mas, porém, você tem que ser fiel e não andar assim brincando com as outras cunhãs por aí”. “Europa, França e Bahia” também é título de um poema de Carlos Drummond de Andrade e de música de Alceu Valença. Mas entre todos os estados brasileiros, eu presumo que a Bahia estabeleceu um vínculo fraternal com a França. A começar pela bandeira tricolor. Que não teve influência direta, mas indireta, uma vez que a inspiração veio da bandeira americana, cujas cores por sua vez foram inspiradas nas da bandeira da Revolução Francesa, atual bandeira da França.

Podemos citar franco-baianos famosos como o etnólogo e fotógrafo Pierre Verger ou baiano-franceses de estirpe como Glauber Rocha, entronizado pelos franceses como gênio do cinema mundial. Estes não são os únicos casos. Ontem, enquanto La Marseillaise ecoava no estádio, como fosse uma pororoca, se materializou a conjunção franco-baiana numa multicolorida e sonora festa. Com direito a franceses usando vestidos e toucas brancas de vendedoras de acarajés e baianos cantando o hino francês com emoção única. Única em todos os sentidos, porque os franceses podem cantar o hino deles várias vezes por ano e talvez por mês, mas um baiano cantar o hino nacional francês, numa cerimônia oficial, internacional, esportiva e ainda por cima em pleno território baiano não é todo o dia. Foi ontem.

Tinha baiano se esgoelando a todo vapor ontem na torcida, com ímpeto revolucionário: “Allons enfants de la Patrie, Le jour de gloire est arrivé! Contre nous de la tyrannie, L’étendard sanglant est levé”. Vai poder contar para os seus filhos e netos que cantou a La Marseillaise em francês com franceses numa Copa do Mundo. E ninguém pode censurar. Se Victor Laszlo pode cantar num bar do Marrocos, porque os baianos não poderiam cantar na Fonte Nova? E com sotaque baiano fica mais bonito. Este sincretismo étnico foi possível porque talvez os franceses sejam os baianos da Europa e os baianos os franceses do Brasil. Claro que é uma teoria. Mas alguém tem que explicar esta pororoca.

continua após a publicidade

Os franceses são os “diferentes” da Europa, enquanto no Brasil, são os baianos. Os dois povos, se é que podemos chamar baiano de um povo, já que são brasileiros como eu e você, mas o certo é que este “povo”, assim como os franceses, gosta de uma culinária original e diferente, são tricolores, são coreográficos, são sem preconceitos, principalmente no item “cair na gandaia”. Por isto que a festa ontem na Fonte Nova foi uma confraternização franco-baiana sem igual. Tinha gente gritando: “Liberté, egalite e Beyoncé”. E baiano incentivando o time nacional francês no mais autêntico sotaque local: “Vamos pra frente moçada que a bola é redonda e a rapadura é quadrada”. Resultado: o time francês sentiu o calor da arquibancada, achou que estava no Parc des Princes e mandou bucha pra cima da Suiça. Um jogaço: 5 a 2, com direito a pênalti perdido e a um gol anulado no final. Para alegria de Oropa, França e Bahia.