Uma das coisas estranhas de minha infância foi um conjunto de três vidros com órgãos extirpados em cirurgias de membros da família que havia no alto de uma sapateira. Quando fiquei em idade suficiente para apitar alguma coisa eu inventei uma história e falei para minha tia que a saúde pública mandou ela se livrar daquilo. Por medo de multa ela jogou fora. Um dos órgãos, no vidro menor, era o apêndice de minha tia extirpado numa cirurgia no final dos anos 50. Não lembro o que eram os outros, maiores e horrorosos. Eu recordei disso e em busca de mais informações, liguei esta semana para a minha tia que está com 89 anos. Eu perguntei: “Por que a senhora guardou o apêndice no vidro?”. Ela respondeu: “Não tenho a menor ideia”.

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Ela esclareceu que o médico botou aquilo num vidro e disse: “A senhora pode levar para casa”. Ela levou e guardou. “Como a gente era ignorante! O médico mandou e eu obedeci sem saber o que estava fazendo”, disse com tardio e inútil arrependimento. Resumo: eu não sei por que os órgãos foram guardados, mas sei que depois que foram jogados fora, não fizeram falta. Desconfio que eu pensei naqueles órgãos quando anos mais tarde descobri a poesia de Augusto dos Anjos: “E o que ele foi: clavículas, abdômen, o coração, a boca, em síntese, o homem, – engrenagem de vísceras vulgares – os dedos carregados de peçonha, tudo coube na lógica medonha dos apodrecimentos musculares!”

Conversando com o Fábio Schafer, ele não estranhou que havia órgãos extirpados numa prateleira lá de casa. “Eu guardei as minhas amígdalas muito tempo”, disse com certo orgulho e sem também saber por que guardou as amígdalas se elas não voltariam mais para os lugares de onde saíram. Eu suponho que as pessoas antigas ficavam inseguras quando perdiam um pedaço do corpo, não digo pedaços em acidentes que não eram reimplantados.Havia superstição, uma reverência com pedaços do corpo que ficavam pelo caminho. Por exemplo, o cordão umbilical. Até hoje tem gente que enterra o cordão de recém-nascido nos jardins de casa. “A minha família tinha mania de enterrar os cordões umbilicais aos pés de uma roseira”, disse Anatólia, velha amiga.

O Armindo disse: “Pedras da vesícula e dos rins eu sei de muita gente que guardou”. No caso das pedras seria para mostrar para os amigos o tamanho da encrenca da qual o paciente se livrou. Até o pênis foi guardado em vidros de compotas. Existem pelo menos três casos. Um deles foi narrado pelo escritor Carlos Heitor Cony. No livro “Pilatos”, o personagem carrega o órgão sexual amputado em um vidro. O nome do personagem é Álvaro. E o pênis também tinha nome. Era Herodes. Como Álvaro ficou na miséria e perdeu tudo a única coisa que restou na vida foi o vidro com seu único pertence: o pênis morto. Mas até esta ideia também não é tão original. Os norte-americanos se orgulharam um dia de colocar num vidro o pênis de Napoleão. Eram tempos de Guerra Fria. Guerra ideológica e aquilo era motivo de orgulho para os norte-americanos. Além de ir à Lua eles tinham o pênis de Napoleão.

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Tanto provocaram que os soviéticos encontraram um verdadeiro canhão de 30 centímetros: o pênis de Rasputin, um monge devasso que foi amante da czarina Alexandra. E também o colocaram num vidro. Bem grande. O fundador do Museu do Sexo de São Petersburgo, Igor Knyazkin, organizou exposição e declarou orgulhoso: “Com esta exposição, deixamos de invejar os Estados Unidos, onde o órgão reprodutor de Napoleão Bonaparte é mantido. O pênis de Napoleão é um pequeno talo, não pode ser comparado ao nosso órgão de Rasputin”. Neste caso, curiosamente, até faz sentido guardar órgãos em vidros de compotas. Para usá-los em escaramuças ideológicas. Os soviéticos têm justificada admiração por Rasputin: ele aprontou tanto que é apontado como um dos responsáveis pela queda do império russo e a consequente revolução de outubro. A czarina ficou tão encantada com o monge e suas habilidades que lhe mandava telegramas melosos: “Por ti sacrifico meu marido e meu coração. Reze por mim e benze-me. Beijos, amor meu”. Deu no que deu.