“Pode escrever lá que a Edileuza é uma pessoa muito bacana”

Às 8h15 o telefone toca. No outro lado da linha uma voz de barítono entoa solene e vigorosa: “Quem está falando?”. Eu digo que sou eu e a voz completa: “Diga para o Samuel que eu estou aqui embaixo”. O malcriado nem se anunciou, mas ele sabia que eu sabia quem era. O inefável J. Bressan. Os dois iam para o trabalho. Alguns minutos depois eu também sai de casa e estava no ponto esperando o primeiro amarelo para a Praça Tiradentes. Apareceu um Mateus Leme, entrei nele e vi um lugar vago. A moça me olhou e acenou para eu sentar. Eu fui até lá, me sentei e regozijei de minha sorte de encontrar um lugar vago no ônibus. No ponto seguinte subiu uma senhora que pela minha avaliação superficial teria algo em torno de 70 anos. Minha consciência me cutucou: “Ela precisa do banco mais que você”.

Eu concordei com a minha consciência. Esperei a velhota me olhar para eu acenar e dar o lugar para ela. Estava no banco perto do fundo, mas ela no meio do ônibus olhava ao redor e ninguém se mexia. Pior, ela não olhava para onde eu estava. Minha consciência me cutucou mais uma vez: “Vai lá e a avise que você quer dar o lugar para ela”. Achei que minha consciência exagerava. Principalmente porque ônibus pequenos são lépidos e parecem fazer mais curvas que os maiores, embora o caminho seja o mesmo. E se equilibrar no corredor com eles em movimento não é fácil. Minha consciência disse: “Se é difícil para você, imagine para ela”. Então fui lá me balançando de acordo com o movimento do ônibus, bati no ombro da mulher e ofereci o meu lugar para ela. Pensei: assunto resolvido.

Eu me encostei na barra de ferro para não desequilibrar. Uma mão bateu no meu ombro. Era a moça que estava ao meu lado no banco, a que me acenou que havia lugar livre. “Por favor, sente no meu lugar”, disse-me. Eu já estava ajeitado, mas achei deselegante recusar a oferta e fui para o lugar da moça, ao lado da velhota que ocupou o meu lugar. A moça ficou em pé, aparentemente satisfeita por ter feito uma boa ação. Eu pensei: “Ela deve ter uma consciência pentelha que nem a minha”. Nisto desocupou um lugar e a moça sentou. Eu pensei: “Beleza. Todo mundo acomodado”. Mais adiante entrou outra velhinha, tão velha que fazia a velhota ao meu lado parecer uma mocinha. Entrou capengando, balançando, procurando um lugar e ninguém se mexeu.

Eu não esperei a consciência me cutucar. Estava na cara que alguém teria que fazer alguma coisa. Este alguém seria eu, porque as outras pessoas de repente preferiram olhar para fora, estava realmente um dia bonito. Desta vez a velhinha olhou e eu acenei. Ela veio para o meu lado e eu dei o lugar. Ela agradeceu ofegante e feliz: “Obrigada, meu filho!”. Para ela me chamar de filho devia ter mais de oitenta anos. Só de pensar isto eu fiquei feliz. Se com meus sessenta e poucos já me sinto cansado e desconfortável em pé no ônibus, imagine uma senhora de oitenta anos. Eu de novo em pé no ônibus. E, de novo, a moça que me deu o lugar se levantou e disse peremptória, apontando para o banco vazio: “Por favor, eu faço questão”.

Aquilo me deixou embaraçado. Parecia que nós dois estávamos competindo para ver quem era mais bacana e civilizado no ônibus em que ninguém ligava para os velhos. Desta vez eu sentei meio desconfiado. E fiquei quieto torcendo para não entrar mais nenhuma velhinha cambaleante para eu dar o lugar, porque cortesia em demasia pode parecer hipocrisia. Mas se aparecesse era o que eu ia fazer. Perto do Shopping Mueller as pessoas começaram a descer deixando lugares vagos. Podia entrar um monte de velhas que teriam assentos. Quando desci no final da Rua Barão do Cerro Azul, último ponto antes da parada final, a moça que me deu o lugar duas vezes também desceu. Ela comentou: “As pessoas estão muito mal-educadas e insensíveis. Mas nem todo mundo é assim”. Ela me olhou e disse: “Eu sei que o senhor escreve no jornal. E critica os insensíveis. O senhor pode escrever lá que eu sou sensível. Pode escrever que a Edileuza é uma pessoa muito bacana”. Ela sorriu e foi embora feliz. Não sei se por ser sensível, por ser bacana ou por ter dado o recado dela. Mas foi o que aconteceu.