Pegava o telefone e ficava quase meia hora conversando com os mortos

O medo de minha tia Ana que está com 90 anos é ficar maluca. Ela tem um orgulho danado de sua lucidez. O corpo está todo enrugado, os ossos encolheram, ela anda arcada, mas tem algo que parece não ter sido afetado: a lucidez. Ela bate com o dedo indicador na cabeça e diz: “Isso aqui ainda funciona cem por cento”. E não é cascata. Quando ela começa a falar de coisas do passado aparece uma profusão de detalhes que impressiona. E do presente também. Sob certo aspecto ela se dá bem com a velhice. Ela fica toda faceira quando alguém a pega pelo braço e atravessa a rua. Mas como nada é perfeito, ela tem medo de ficar maluca. Tudo por causa de um conhecido, o Normando.

Normando ficou maluco. “Eu ficava olhando. Ele sentava no sofá, pegava o telefone e ficava lá sentado por quase meia hora conversando com os mortos”, diz ela. Normando contava que os parentes e amigos que morreram estavam com saudades dele e queriam que ele morresse para todos se encontrarem no outro lado. No entanto, como ele não tinha pressa em morrer ele ficava ao telefone tentando convencer o interlocutor a não ter pressa com ele. O diálogo começava de forma bem natural. Normando perguntava: “Quem é você e o que é que você quer?”. A voz no outro lado se apresentava, dizia o que ela queria e ele respondia: “Santinha, fica tranquila, pode ficar muito tranquila, que eu vou. Eu vou ver vocês todos aí. Mas eu vou demorar um pouco”. Santinha era uma irmã dele que morreu há cinco anos.

Depois que ele conversava, minha tia perguntava para Normando: “Quem era?”. Normando se levantava do sofá com dificuldade enquanto respondia: “Era Santinha. Ela queria saber quando eu vou. Eu disse que ia demorar um pouco. Eu já disse que não tenho pressa. Minha vida está boa e eu não estou com pressa”. No entanto, a lucidez de Normando foi embora e com o tempo, quando ele estava com 92 anos, ele não reconhecia os filhos e mais ninguém. A safadeza foi a última que se foi: numa tarde uma senhora passou em sua casa e perguntou se ele precisava de diarista. Normando disse: “Eu preciso de uma mulher jeitosa que nem você para dormir comigo”. A mulher se afastou rindo do assanhamento do velho. Mas ele estava falando sério. Depois que a safadeza foi embora, não demorou muito para Normando finalmente ir se encontrar com Santinha.