No dia em que chegou em casa há sete anos e olhou a cachorra, Tiago riu e disse: “Cocker? Esse faz alegria dos veterinários”. Segundo ele, que manja do assunto porque teve cão da raça, o bicho é bacana, mas tem uns troços que só médico de animais resolve. Agora com sete anos, meio velha segundo a cronologia etária dos cães, ela anda com problema na coluna. Já há tempo começou a aparecer caroços na pele. A veterinária receitou Cefalexina. Metade de comprimido duas vezes ao dia durante um mês. E, depois, duas vezes por semana até o fim, para as perebas não voltar. Tudo bem. Mas tem um problema. A Cefalexina é um antibiótico com cheiro forte, enjoativo e a cachorra refuga. Quando estou com paciência, enrolo num pedaço de pão seco ou enfio num pedaço de banana e o bicho guloso engole sem perceber.

continua após a publicidade

Mas, quando estou com pressa, abro a boca do animal e agasalho o comprimido na fronteira entre garganta e boca. No movimento que ela faz com a boca, o remédio escorrega para o estômago que nem submarino amarelo. Aí, para não deixar o bicho magoado eu dou biscoito. E cachorro perdoa fácil. Principalmente quando tem biscoito na parada. Quando eu vou embora, ela me segue até a porta e late agradecida. Quando cheguei em casa de volta do trabalho, estava cansado e um pouco faminto. Guardei alguns troços na geladeira, pois passara antes no mercado. E quando fui para o quarto eu vi o meu livro “Como aborrecer um guarda”, de Efraim Kishon, o escritor, não o empregado rebelde de Curitiba que se vingou do patrão.

A cachorra tentou comer um pedaço do livro e não conseguiu. Ela comeu quase todo o marcador de páginas com pequena gravura de Debret. Deixou só um pedaço. Eu gostava do marcador. Eu peguei o pedaço que sobrou e tentei provar para ver se era gostoso. Não era. Ainda mais que era um marcador de 22 anos e certamente o prazo de validade estava vencido. A página em que estava o marcador era o começo da história de um sujeito chamado Schulz que está em Israel e pega carona com o amigo porque tem pressa. Schulz vai buscar uma bomba atômica no correio, enviada da Alemanha por seu cunhado Frederico, mas está preocupado porque a mulher disse que era contra a ideia de ter bombas atômicas em casa.

Ela disse: “Não quero bombas atômicas em casa. Basta de aborrecimentos com o menino”. No caminho Schulz comentou com Kishon: “Frederico sempre foi generoso. Mas o que é que eu faço com uma bomba atômica?”. Se a cachorra soubesse ler, ela ficaria curiosa porque o resto da história estava na página seguinte, que ela não virou porque resolveu comer o marcador. Eu sentei na cama e olhei para o animal que percebeu ter feito coisa errada e evitava me encarar. Cães tem isto: quando fazem traquinagem, sabem que fizeram, querem ser perdoados pelo dono. Eu fiquei pensando se ela comeu o marcador de páginas do livro em vingança pelo fato de eu enfiar o fedorento Cefalexina goela abaixo.

continua após a publicidade

Ou, talvez, comeu para me sugerir algo melhor que Cefalexina, como dissesse: “Já que você quer dar coisas estranhas para eu comer, então me alimente com um marcador de páginas, que é mais gostoso. Ou, se não é tão gostoso quanto um pedaço de bife, não fede tanto”. Não sei se era tudo isto. Eu me lembrei do filme “Como era gostoso o meu francês?”, de Nelson Pereira dos Santos, que tem meu sobrenome, mas não é meu parente. E também me lembrei da mulher de Schulz. Ela tem razão: o que a gente faz com uma bomba atômica em casa? E, finalmente, eu me lembrei da minha fome. Tantas questões mais importantes. Eu peguei o marcador de páginas e mostrei para a cachorra, que evitou olhar para o pedaço de papel cuja maior parte foi devorada. Eu perguntei: “O marcador de página estava gostoso?”. Ela abaixou a cabeça envergonhada. E, depois, ergueu a pata esquerda batendo-a na minha mão direita, certamente pedindo perdão. Eu perdoei. Parodiando o velho ditado, errar é canino e perdoar é divino. Passei a mão sobre a cabeça da cachorra, ela lambeu a minha mão e eu fui cuidar de problemas mais sérios porque, como todos sabem, os fáceis são fáceis de resolver.