Os hippies da Ouvidor Pardinho são hippies?

Em uma esquina da Praça Ouvidor Pardinho um grupo de pessoas, homens e mulheres, passam o dia tentando vender bijuterias artesanais de metal e de couro que produzem no local. O visual despojado e o vestuário largadão lembram um pouco os hippies americanos dos anos 60. E o fato de os hippies brasileiros dos anos 70 também se dedicarem a uma economia artesanal e alternativa, leva as pessoas que passam por ali, quando prestam atenção no pequeno grupo heterogêneo, a chamá-lo de hippie, embora alguns se assemelhem a punks. E não foi uma vez ou duas que ouvi pessoas indagarem se aqueles hippies vendiam alguma coisa e se compensava, do ponto de vista financeiro, ficar ali o dia inteiro para expor os seus produtos.

Sem entrar no aspecto econômico da indagação e ater ao aspecto semântico, eu me perguntei: mas eles são hippies? Um dia pensei em perguntar se eles se consideravam hippies, mas desisti. Achei temerário. Estão ali para vender bijuterias e não entrar em discussões sobre a eterna questão do ser ou não ser. Como eu não perguntei, parti para o método dedutivo e conclui que não são hippies. Estariam próximos de uma seita rastafari dissidente. Como variação neopentecostal periférica que coloca nome estapafúrdio numa placa diante de uma casa no Boqueirão e que chama aquilo de templo. Há meses, passando pelo Boqueirão com o fotógrafo Allan Costa Pinto, me impressionei com a quantidade de templos improvisados – há algo muito estranho nas entranhas da república brasileira.

A questão dos hippies da Praça Ouvidor Pardinho é análoga. Não são hippies, tampouco rastafáris, mas algo resultante de aspectos secundários de ambos. E, vamos ser justos, não é apenas naquele lugar da cidade que se encontra estes personagens urbanos. Mas, por que não são hippies? Simples: o movimento hippie causou profundo impacto na sociedade americana. Estes novos hippies não causam impacto nem na calçada em que expõem seus produtos. O movimento hippie foi uma revolução de comportamento nos anos 60 e entrou em decadência nos Estados Unidos nos anos 70. Portanto, do ponto de vista cronológico não existem mais hippies. Eles foram extintos, assim como os dinossauros, não na mesma época, claro.

Se os hippies não existem, eles não podem ser hippies. Ainda assim é bom lembrar que o movimento hippie vivia em comunidades que praticavam uma espécie de socialismo libertário. Os hippies, nem todos, eram adeptos do nudismo, tinham forma de vida nômade, viviam em comunhão com a natureza, se empenhavam em questões ambientais, eram a favor da emancipação sexual e combatiam a guerra e as armas nucleares. O pessoal da Praça Ouvidor Pardinho não é nômade e não fica pelado. E, se ficasse, ia pegar pneumonia. Os hippies eram budistas ou hinduístas. E por aí, vai. No entanto, as pessoas que os chamam de hippies não estão sem razão. Os hippies assimilaram ideias de um movimento anterior chamado beat. E os termos beatnik e hippies, assumiram conotação pejorativa.

Certa repulsa aos hippies decorria do fato de que o movimento foi engrossado por soldados estropiados que vinham do Vietnam. E, também, porque foram acusados por atitudes anti-higiênicas, como ficar sem tomar banho, pelo menos com alguma frequência. E tinha os cabelos compridos. Quando entrou em declínio nos Estados Unidos, o movimento ganhou ressonância entre jovens de classe média no Brasil, que incorporaram hábitos hippies: vida comunitária, cabelos longos, roupas coloridas, fumar maconha e economia traduzida na produção de penduricalhos de metal e de couro. Aparentemente isto ocorreu porque estes jovens não queriam ser comunistas, mas também se revoltavam contra a repressão da ditadura militar. Nos anos 80 não havia mais hippies autênticos no Brasil. Os adeptos do comércio de penduricalhos continuaram a existir até hoje. E, por falta de denominação melhor, e de interesse de procurar uma nova, eles continuaram sendo chamados de hippies.