Eu gosto do escritor norte-americano Norman Mailer desde que ele era vivo. Depois que ele morreu, costumo dar uma conferida em seus livros para mantê-lo vivo, vamos dizer, literariamente. Aprendi a me surpreender com ele ainda nos anos 60, porque Mailer foi um dos pensadores malditos daquela década. Pensador é maneira de dizer, Mailer se dedicava mais a arrumar confusão, provocar o establishment americano, o presidente John Kennedy, enquanto casava, divorciava e brigava com suas ex-mulheres e também com suas mulheres atuais. Mailer gastava uma grana preta com pensões para ex-mulheres e o monte de filhos que ele fez. Ele tinha numa teoria: casamento é bacana, tanto que casou muitas vezes. Mas não via graça em casar e não fazer filhos. Era um reprodutor.

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Mailer sabia escrever, mas como era meio maluco, gastava muito de seu tempo escrevendo coisas malucas. Dia destes fiquei com saudades dele e abri uma edição de 1967 de “Canibais e Cristãos”, que comprei num sebo em Londrina no dia 30 de outubro de 1992. Abri sabendo de antemão que ia encontrar coisas estranhas. O livro tem 572 páginas que não são tão interessantes quanto o título. Apesar disso, de vez em quando eu o pego para reler. Através da releitura de artigos tresloucados eu recordo como os anos 60 foram agitados e regidos por um povo doido. Antes que alguém se interesse, o livro não tem nada de cristão e muito menos de canibais. O título é uma metáfora sobre o amontoado de textos políticos agressivos, entrevistas e outras coisas. Até poesias tem.

E foi justamente em uma poesia que eu me enrosquei. Achei estranha e que não fazia sentido, embora eu já tenha idade para saber que poesias não precisam necessariamente fazer algum sentido. Mas mesmo poesias que não são boas, quando elas são estranhas acabam ficando na memória da gente como os melhores poemas. Eu acho que foi o caso de uma que encontrei em “Canibais e Cristãos”. O poema diz o seguinte: “Os espíritos brilhantes são muitas vezes flatulentos. Respiram o gás da morte dentro deles. Buscando como harpias um bafo do tesouro”. A ideia de um espírito flatulento pode ser original e surpreendente, mas não faz sentido. Se o espírito não é feito de matéria, ele não pode soltar pum. Pelo menos foi o que eu, cartesianamente, pensei na hora, depois de ler o poema. Porque o pum é consequência do processamento do alimento no estomago. E o alimento é matéria.

A parte da flatulência parece cômica. Mas está lá na página 436. Eu fechei o livro e pensei na segunda parte: por que os espíritos iriam respirar o gás da morte, se já estão mortos? Também não faz sentido. E, por fim, o que é realmente tesouro para um espírito? Eu tinha que trabalhar. Portanto tratei de fechar o livro, esquecer o poema e desci para a Rua Mateus Leme para pegar o ônibus. Era um dia frio, com vento frio. E nos dias frios andar de ônibus pode ser uma experiência desagradável, principalmente com as janelas fechadas. Claro que me lembrei do poema. Claro que torci para esquecer aquele tema tão incomum para um poeta, o mais rápido possível. Não sei por que Mailer escreveu aquele poema. Alguma coisa muito real o motivou. Mas o livro tem mais coisas que hoje podem ser consideradas malucas, mas à época em que foram ditas e escritas faziam sentido, porque nos anos 60, tudo era possível e permitido. Vou passar um bom tempo sem reler “Canibais e Cristãos”.

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Ainda bem que Mailer tem coisas boas e interessantes. Gostei de “Um Sonho Americano”, um livro que pode ser lido como uma narrativa policial. E também gostei da reportagem “A Luta”, sobre o confronto no Zaire entre George Foreman e Muhammad Ali. É um dos maiores embates da história do boxe. E ele estava lá para conferir. Faro de repórter. Um dos melhores trabalhos do chamado jornalismo literário. Tenho outros livros de Mailer, como “Os Nus e os Mortos”. Ainda bem que estes não falam de flatulência.