Meu sobrinho Guilherme Bittencourt me apresentou Mike Ness há mais de dez anos. Ele estava em casa: “Tio, ouça, eu acho que você vai gostar”. E gostei. Claro que posso estar errado, não existe unanimidade em nada, mas acho difícil alguém gostar de rock roll e não gostar do Social Distortion, banda punk americana, com pegada meio Rolling Stones, pancada que não trai a sonoridade pesada do punk e letras que evocam os melhores momentos de Tom Waits. Eu me impressionei com as letras, pegada de poeta, de gente que conhece as ruas e pessoas que fazem parte deste grande pedaço da humanidade que não goza de bons empregos, de mulheres bonitas, de casas com piscina, de casas na praia e de dinheiro no bolso.

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Mike fala desta gente. Que os americanos chamam de losers. Gente para a qual ele escreveu: “Deve haver um céu, porque eu já tive meu tempo no inferno”. Que é a maioria da humanidade, nos Estados Unidos, no Brasil ou resto do mundo. A verdade é que o mundo tem vencedores, mas a maioria da humanidade não está entre eles, a não ser se considerar uma vitória o fato de estar vivo. “A vida passa tão depressa, você só quer fazer o que acha certo. Fecha os olhos e então vira passado”, diz ele. Ele sabe que a vida para alguns nem passa, porque muitos são atropelados pela morte muito cedo – e ela existe no mundo contemporâneo num variado cardápio servido diariamente a qualquer loser infeliz e sem saída.

A vida também passou depressa por Mike Ness ou ele passou depressa por ela, porque em grande parte de sua juventude estava na prisão ou em clínicas tentando se desentupir de tanta porcaria que tomou. Mas o que viu ele viu com olhos de lince, transformou em letras que parecem gritos de desespero. “Os bons tempos vêm e os bons tempos vão. Eu só desejava que os bons tempos durassem um pouco mais”, diz na canção que tem o nome de uma autobiografia: “História da minha vida”. No entanto, Mike Ness pode comemorar duas coisas nas quais os seus amigos de juventude não apostariam um dólar furado: ele ainda está vivo e a banda, quem diria, ainda está na estrada, enquanto muitos destes amigos se foram de uma forma ou de outra. Ele continua por aí, com o corpo mais tatuado que o lombo de um pirata pirado.

E provavelmente tem ainda mais chão pela frente e vai se cuidar, dobrou os 50 e não dá para ficar dando bobeira vida inteira. Eu achava que a possibilidade de um dia ver e ouvir Mike Ness cantar era zero. Eu que tive a oportunidade de ver e ouvir B. B. King em Curitiba, se não me engano, três vezes e não vi nenhuma, também não apostava um tostão furado que um dia veria ou ouviria a banda de Mike. No entanto, na noite de 18 de abril de 2010, o Social Distortion se apresentou em Curitiba. Dias antes eu pensei: “Caramba! Vou ouvir o pessoal”. Quando avisei em casa, meus filhos torceram o nariz: “Cê tá ficando maluco? Isto aí não é concerto de música clássica, que você senta tranquilo e fica ouvindo. Isto é punk, pai! E punk é paulada”.

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E para me convencer mostraram vídeos de shows punks, alguns do Social Distortion. Escolheram bem. Era pauleira pura. “Se aquele gordo ali, que tá doidão, te dá uma cotovelada, você vai a nocaute em três segundos, sem direito a atendimento médico”, disse o mais velho. Eu levei em consideração: ninguém vai a show punk para ficar parado. Conjeturei: passei dos 50 há tempo. E tentei ser coerente como Mike Ness está sendo e achei que não devia dar bobeira. Eu achava que não ia levar nenhuma cotovelada e não iria a nocaute. Mas não ia deixar os garotos estressados em casa enquanto estava sacolejando os ossos num show de punk rock, correndo o risco de ir a nocaute. Claro que seria ainda pior que se isto acontecesse. Eles iriam falar até o final dos séculos. Mesmo depois que eu me fosse, iriam se lembrar do episódio: “O maluco do pai foi a um show de punk rock, levou uma cotovelada e foi a nocaute”. Não fui. Naquele dia eu poderia ter visto e ouvido Michael James Ness, um dos maiores poetas do rock e sua banda. Mas tudo bem. Não o perdi de vista. Continuo ouvindo-a em casa.