Começo de noite fria na Praça Tiradentes. As pessoas andam rapidamente, todo mundo volta para casa, entre elas as que se ajeitam no interior do ônibus da linha Vila Suíça. Eu no meio daquela gente, incógnito, misterioso e escutando as que falam sozinhas nos fones engatados aos ouvidos e conectados aos celulares. Parece bando de alucinados. Achei melhor ficar calmo. Afinal, estava com sorte. Peguei fila pequena e achei banco vazio. Era bom lugar junto à janela. Sentei e fiquei encolhido e empoleirado. O ônibus partiu para nos levar de volta do trabalho. Na Mateus Leme, o ônibus freou brusco. Quem estava em pé e não se segurou firme, rodopiou. Quem estava sentado fez o movimento que a física explica: a gente vai, mas o ônibus fica. O motorista resmungou alguma coisa e uma moça alta, morena e bonita entrou.

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A moça tinha cabelos negros e longos, usava camisa azul e blusa sobre a camisa, além de calças jeans delineando a bela anatomia. Pensei: “Esta é de primeira! E vai passar batido”. É raro um material de primeira sentar ao meu lado. Mas ela olhou o lugar ao meu lado, pediu licença e sentou. Como acontece nestes casos, embora o sujeito fique contente que tem mulher bonita ao lado, o bom mesmo é ficar de bico fechado para não arrumar encrenca. Foi o que fiz. Mas não deixei de perceber que era jeitosa. Quando digo jeitosa, eu me refiro àquelas atrizes italianas dos anos 60 e 70, tipo Sofia Loren, Cláudia Cardinale e Ornella Muti. Como o banco era pequeno e fazia frio, aquele corpo aqueceu o meu e achei isto agradável. E também achei que seria prudente não pensar em besteira.

E a coisa ficaria nisso se ela não me cutucasse e dissesse: “Olha lá!”. Era para olhar para frente, mas eu olhei para ela com cara de tanso, para ela não desconfiar de que eu entendi que era para olhar para frente, mas eu queria mesmo era vê-la tête-à-tête. No rápido olhar eu percebi que sua voz era ligeiramente infantil e seus lábios eram sensuais e carnudos e tinham cor natural. É raro a mulher ficar com os lábios bonitos sem batom: mas aqueles lábios não precisavam disso. A pele do rosto era sedosa. Eu fiz de conta que não entendi e perguntei: “Olhar o quê, senhorita?”. Ela disse: “Olha só a moça no colo do motorista!”. Eu olhei. Na realidade, a moça não estava no colo do motorista. Ela estava sentada desconfortavelmente em um cano que separava o interior do ônibus do motorista.

No entanto, um carro passou na frente do ônibus, o motorista freou de novo bruscamente e aí sim, ela se desequilibrou e caiu no colo do motorista. A garota ao meu lado disse: “Não falei?”. Sim. Ela falou. Boquinha maldita. O motorista soltou um palavrão cabeludo contra o motorista do carro que atravessou a sua frente. E a moça disse desculpa e voltou para o cano em que estava antes da freada. A moça ao meu lado contou que estava furiosa com o motorista porque estava num ponto num lugar sombrio, ela esticou o braço para o ônibus parar e ele não parou. Ela pulou na frente. Então ele freou bruscamente. E quando ela subiu, ele disse irritado: “Você não sabe pegar ônibus? Tem que acenar antes para eu ver”. Ela não respondeu, mas comigo ela abriu o coração: “Ele fica no maior lero-lero com as mocinhas, feito assanhado, como vai ver as pessoas no ponto? Ainda mais num ponto sem luz!”.

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Ela estava com razão. O motorista tocou em frente e a moça no cano voltou a tagarelar no cangote dele contando lorota atrás de outra. E ele gostava. “Isto não está certo”, disse a moça ao meu lado. Ela perguntou onde eu ia descer e eu disse no São Lourenço. Eu perguntei onde ela ia descer e ela disse no ponto final. Ela falou coisas sem interesse para a humanidade, para a ciência e para o futuro da cidade, mas agradáveis de ouvir porque sua voz era quente e ela era amável. Foi com aperto no coração que percebi meu ponto próximo. Eu me levantei, ela perguntou o meu nome e eu menti: “Pitágoras Cavalcante”. Ela sorriu e disse que o dela era Amanda Carvalho. Eu pisquei e ela disse: “Tchau!”. Eu disse “tchau” com medo de parecer velho assanhado.