O último abraço de Luiz Carlos foi em seu assassino

Domingo à noite ele se enfezou com algo banal: um freguês derrubou o copo no chão de seu bar num bairro em Fazenda Rio Grande. O freguês era Joel. O dono do bar era Luiz Carlos. O freguês não gostou e puxou a arma calibre 38, que estava entre o corpo e a calça, sob a camisa. Seis balas no tambor. Luiz Carlos não se intimidou, saiu do balcão e tentou dominar o encrenqueiro. Ele foi para cima do encrenqueiro, os dois se abraçaram e Joel apertou o gatilho. A arma disparou. Um tiro só. Luiz Carlos caiu sobre Joel, os dois foram ao chão e o dono do bar morreu abraçado ao seu assassino. Ele ficou no chão do bar de bruços sobre o encrenqueiro que perdeu os sentidos, porque ao cair Joel bateu a cabeça no assoalho e desmaiou. Cena rápida, inesperada, brutal e fatal.

Os dois ficaram comicamente abraçados no chão. O abraço é um gesto corporal que une dois amigos ou dois adversários que tentam se apaziguar. Não era o caso. Ali o abraço era o último gesto de um sujeito que acabou de morrer. Os dois permaneceram imóveis no chão: um morto e outro desacordado. Luiz Carlos de rosto colado ao rosto do assassino, sobre ele, de pernas abertas, o outro embaixo, com as pernas esticadas. Os dois de bermudas. Um abraço mortal e quase obsceno. A vida não vale um copo de vidro quebrado em algumas quebradas do Brasil. Seria mais uma entre milhares de mortes que passam incógnitas todos os dias, todas as semanas, todos os anos, não fosse a delatora arte da fotografia. Não há tragédia na foto. Há comicidade desengonçada. Que não combina com a morte.

Matar e morrer estão deixando de virar tragédia para ser comédia. Matar deixou há muito de ser um acontecimento extraordinário nas cidades brasileiras para se transformar em algo banal, que não surpreende mais ninguém. A cena, para quem não conhece o resultado, não sugere nada além de dois homens abraçados no chão. Mas foi homicídio. A polícia chegou, transportou o corpo de um para o Instituto Médico Legal e o outro foi preso, depois de acordar da pancada ao cair no chão. Joel foi indiciado por homicídio por motivo fútil. Talvez nem saiba o significado da palavra fútil. Mas certamente conhece o significado da palavra homicídio. Esta morte vai entrar para o currículo. Em alguns círculos este tipo de incidente conta pontos.

Ao ver a foto no portal Paraná-Online eu me lembrei do escritor João Antônio autor de um livro de contos chamado “Abraçado ao meu rancor”. Luiz Carlos morreu abraçado ao seu assassino, por quem nutriu um repentino rancor. João Antônio foi o tradutor da vida desgraçada dos pobres-diabos que frequentam bares sujos das quebradas encardidas de todas as cidades brasileiras. Ele conhecia os ambientes, conhecia os jogos perigosos de seus tipos, mas naquele tempo havia uma espécie de código, uma espécie de respeito e se havia mortes, elas, quase sempre, eram o desfecho de uma contenda entre tipos que colecionavam desafetos e entreveros e sabiam que um dia iam encontrar o dele, porque como se dizia naquele tempo, “o dele estava guardado pelo destino”. O crime era um desfecho grandiosamente trágico e não um evento banal.

Hoje qualquer sujeito carrega uma arma. Qualquer sujeito mata. Qualquer um é assassino. E qualquer um também pode ser o morto. É absurda a facilidade com que se mata – e também com que se morre por motivo banal. Olhei a cena, conferi o roteiro e pensei: “Como João Antônio contaria a história?”. Provavelmente ele não contaria se não estivesse no local ou não ouvisse de algumas testemunhas relatos confiáveis e cheios de detalhes. Para rechear uma narrativa que desembocou num desfecho trágico, seria preciso ouvir, reconstruir gestos e traduzir a atmosfera do pequeno boteco pobre de vila. Mas se não houve mais nada que um copo que caiu e um dono de bar que não gostou? Neste caso não há nada a fazer que registrar o caso numa nota de jornal: “Dono de bar morre em cima de seu próprio assassino na Região Metropolitana de Curitiba”. Um epílogo infame para uma vida. Para a vida de qualquer pessoa. E foi o que aconteceu. Mais nada.