O Sr. Rigolino faz muito barulho no apartamento de cima

Ao longo dos anos Carlos de Athayde aprendeu que a vida sempre reserva surpresas e os planos feitos nem sempre dão certo. E não seria diferente com a aposentadoria. Quando pensou que fosse descansar nos anos crepusculares, a neta engravidou de um sujeito que desapareceu, foi trabalhar e a mulher ficou em casa com um bisneto para cuidar. Até aí, fazer o quê? O diacho é que mais uma boca, ainda mais de criança, pedia reforço no orçamento. E foi assim que ele foi parar na portaria do condomínio de luxo com uniforme que lhe dava aparência de almirante inglês do final do século 19. O uniforme era de menos. O problema era os bacanas. Não foram precisos mais que dois meses para Carlos descobrir que existem três tipos de bacanas: os ladrões, os neuróticos e os pernósticos.

Claro que tem outros. Mas são exceções. O bom do bacana é que ele acha pertencer a outro mundo e passa pela portaria como cometa perto da Terra: rapidinho e sem dar bola. Às vezes uma sirigaita enchia a paciência. Mas Carlos tinha idade para tirar de letra. No entanto, como estava cansado de saber, uma hora ia aparecer encrenca. Ela aparecia. Pequena ou grande. Maluca ou não. Como a caso de Renato Magalhães de Bourbon. Este Bourbon não existia na família Magalhães. O pai de Renato colocou porque dava toque aristocrático. Renato Magalhães de Bourbon se enfurecia se não o chamassem de Dr. Renato. De qualquer forma, se não tivesse motivo para se enfurecer Renato Magalhães de Bourbon arrumava um bom motivo porque, para Carlos de Athayde, aquele cara era um pernóstico. De marca maior.

Um dia chegou para o porteiro e disse: “Que é isso, Carlos? O que você faz aqui?”. Carlos quis saber o que estava acontecendo e Renato Magalhães de Bourbon disse que o vizinho do andar de cima fazia um barulho infernal. Carlos pensou: “Eu sou porteiro e não síndico”. Mas ficou quieto enquanto o bacana saiu enfurecido para a rua. Ele reclamou uma, duas e três vezes. Até Carlos perder a paciência e dizer: “O senhor me desculpe, mas eu acho que não tem nenhum barulho no apartamento acima do seu”. O bacana se enfureceu: “Você está me chamando de mentiroso?”. Carlos disse que não. O bacana puxou Carlos pelo braço, o arrastou até o elevador e apertou o botão do 10o andar. O elevador subiu direto como um foguete.

Chegando ao andar do bacana, ele deixou o elevador, puxou Carlos, abriu a porta do apartamento e empurrou o porteiro para dentro. Então ficou parado no meio da sala. E depois de um tempo sorriu e perguntou: “Ouviu? Ouviu?”. Carlos disse: “Não ouvi nada”. O bacana se enfureceu: “Como não? Não ouviu porque é surdo!”. Carlos olhou o bacana. Olhou a sala do bacana. E perguntou para os seus botões: “Por que será que os bacanas são pernósticos?”. Ele não sabia. Mas tinha certeza de que aquele sujeito era. Renato Magalhães disse, com dedo em riste no nariz de Carlos de Athayde: “Quem mora lá em cima é o Sr. Rigolino. Exijo que você vá lá em cima e dê um esculacho neste sujeito”. O porteiro disse que não ia fazer isso. O bacana perguntou: “Tem medo? Só porque ele é um conselheiro?”.

Carlos estava cansado. Vontade de sair do apartamento do bacana, jogar a porcaria de uniforme de almirante no lixo e cair fora. Mas nesta hora aparecia na cabeça a carinha sorridente do bisneto. Tinha que pensar nele. Era pensando nele que arrumava forças para tocar o barco em frente. Ele respirou fundo e disse cansado: “Renato, o conselheiro mudou faz três meses. Ele ganhou uma grana preta para pagar aluguel de mansão bacana e foi morar em outra freguesia. Lá em cima não tem ninguém. Não tem nem mosquito. Você entendeu o que eu disse, Renato?”. O bacana ficou enfurecido. Os olhos cuspiam fogo. Os lábios tremiam. Ele falou com voz inumana: “Você me chamou de Renato, seu animal? Ninguém me chama de Renato! Nem meus amigos. Eu sou o Dr. Renato, entendeu??? Dr. Renato”. Carlos deu meia-volta, deixou o apartamento, pegou o elevador e desceu para a portaria. Não era fácil aguentar chilique de bacana. Ainda mais do Renato Magalhães de Bourbon. Que estava ficando louco.