O primeiro Sonho de Valsa a gente nunca esquece

Lembro-me como hoje a primeira vez que eu comi um Sonho de Valsa. Sonho de Valsa era o bombom mais cobiçado. Coisa fina. Eu via as meninas comendo com cara de luxuria e ficava com vontade – de comer o Sonho de Valsa. Mas a grana em casa era curta. Curioso que não tinha dinheiro para comprar bombom, mas tinha para comprar fascículos de Conhecer, a enciclopédia que começou minha eclética formação intelectual, na qual até hoje misturo Chantecler com fecho écler. Eu também dava jeito de arrumar dinheiro para comprar gibis de Tarzan, Cavaleiro Negro e outros. Tinha dinheiro para comprar figurinhas da Copa de 1962. Mas não tinha para comprar bombom. E queria comer bombom.

Quem deu um jeito no dilema foi minha professora de francês, chamada Elvira Pigalle, que morava na rua de baixo de nosso campinho de futebol. Eu sempre desconfiei que o Pigalle da Dona Elvira fosse cascata, porque eu tinha uma camisa Pigalle e o marido dela não era fabricante e nem vendedor de camisas, mas viajante da White Martins. Ser viajante era bom emprego naquele tempo, assim como ser bancário do Banco do Brasil. A diferença é que toda noite o bancário estava em casa e o viajante, não. O marido de Dona Elvira tinha bom emprego, gostava dela, ela gostava dele, mas havia a ausência que na cabeça dos machos da época era convite para sedução, porque Dona Elvira era uma deusa de gostosura e formosura.

No entanto, sempre houve machos e machos. Havia os que sondavam o terreno, emitiam sinais e se tinham retorno, avançavam lentamente. Se não tinham, sorriam, pegavam a Lambreta e iam para outros territórios. Havia e ainda há o macho alvoroçado. Que entra na área como elefante num playground, apavorando a criançada. Júlio Bergamota era assim. O sobrenome era Bergamo, mas os amigos, sempre sacanas, mudaram para Bergamota. Júlio, com seu jeito estabanado e falastrão, até que era bem sucedido. Muitas vezes, no entanto, ele quebrava a cara por excesso de ousadia. Ele cismou de conquistar Dona Elvira. A deusa de nosso bairro. O alívio de nossos olhos depois das partidas diárias, que a gente fazia de manhã e de tarde, quando vinha da aula.

No fim da tarde, a gente se empoleirava na frente da casa de Dona Elvira. Só para vê-la entrar e sair. Eu não sei o que Bergamota fez, acho que insinuou que ia levar uma caixa de bombons para ela. E como ela sabia que não ia adiantar dizer não, que o cara ia apelar para outra coisa, ela disse tudo bem. E num final de tarde quem apareceu faceiro em cima de uma Lambreta foi Júlio Bergamota, mais cheiroso que pé de manjericão, mais faceiro que Marcelo Mastroiani, mais topetudo que Elvis Presley. Na mão uma caixa de bombons. Ele chamou Dona Elvira, ela apareceu, ele entregou a caixa de bombons e ficou esperando a reação. Ela agradeceu e na frente dele abriu o portão, veio para nosso lado e distribuiu Sonho de Valsa para a gente na calçada.

Aquilo foi um sonho. A gente se entupiu de bombom enquanto Bergamota olhava para a gente com fossemos um bando faminto invadindo a despensa da mãe dele. Ele tinha ímpetos de avançar para tirar bombons da boca da gente. Aquilo custou dinheiro. O dinheiro dele estava entrando pela boca da gente na forma deliciosa de bombons. Ele se sentia humilhado e ofendido, sem poder fazer nada, sem evitar que seu plano afundasse na sua frente como um Titanic de chocolate. Dona Elvira distribuía alegremente os bombons e dizia com um sorriso tão delicioso quanto um Sonho de Valsa: “Meus queridos, cortesia do Julinho, que é um bom rapaz. Não se esqueçam de agradecer”. Ela entregou a caixa vazia para Júlio Bergamota, disse obrigado, entrou em casa e ele ficou na calçada olhando a gente com cara de ódio. A única coisa que conseguiu dizer antes de cair fora com a sua Lambreta foi: “Espero que vocês tenham a maior diarreia do mundo”. O que não assustou ninguém, porque naquela época a gente não sabia o que era diarreia. Quer dizer, ela tinha outro nome popular. Dona Elvira se livrou de Bergamota. E a gente comeu Sonho de Valsa. Ah, isto foi bom! E foi em 1963.