Era noite quente e Hermenegildo andava de um lado para outro no saguão da rodoviária. Ele sempre chegava mais cedo para não perder o horário. Não era teoria. Era experiência. Toda vez que deixou para a última hora, perdeu o ônibus. Não foram muitas. Apenas três. Em uma o táxi alcançou o ônibus adiante. Por isso, chegava adiantado. E ficava de um lado para o outro olhando as pessoas, como se cada uma fosse suspeita de sentar no banco ao seu lado na viagem.
Havia uma ou outra mulher bonita, mas raro. O resto era gente feia, velha ou gorda. Mulher bonita não importa numa viagem de ônibus. O sujeito não tem espaço para fazer nada, mesmo que ela queira. Lugar é apertado e não fosse, há a chance de alguém flagrar e armar escândalo. Sem contar que mulher bonita entra escaldada para evitar intimidade com o estranho do banco ao lado. Ele olhou um tipo: “Espero que não seja aquele!” Era gordo.
O pior tipo para ter ao lado numa viagem é o gordo. O gordo se esparrama, sua, resfolega angustiado e usa o corpanzil como arma letal. O espaço do ônibus foi feito para pessoas com peso médio, não para gordos. Se fosse, cada ônibus transportaria metade dos passageiros que transportam. Os gordos que se adaptem ao banco e que espremam o vizinho. Eles fazem isto, pobres gordos. Claro que existem dois outros tipos piores que o gordo: o bêbado e o fedorento. Tanto o primeiro quanto o segundo podem ser impedidos de viajar o que não acontece com o gordo, o que o recoloca no topo dos indesejáveis na poltrona ao lado numa viagem de ônibus.
“Se fosse aquela garota, maravilhoso!” Uma garota com idade entre treze e dezessete anos é a companhia ideal. Quer dizer, se não for obesa. Mas, mesmo neste caso, não seria tão obesa quanto um adulto gordo a ponto de tornar a viagem um suplício. Meninas, principalmente magras, sentam no banco, não se esparramam e ficam quietas. Podem ter exceções, que ouvem música alto ou coisa parecida. Ainda assim, nada que uma cara feia ou um resmungo irritado não resolva.
Um negro falante. “Espero que não seja aquele!” A pessoa que fala muito é a segunda companhia indesejável, porque não para de falar mesmo quando ninguém quer ouvir. E tem tipos que quando percebem que o outro não quer ouvir, usam os cotovelos para que prestem atenção. Isto é ruim. Se acertam as costelas, machucam. As velhas são companhias adoráveis se quietas e detestáveis se falam pelos cotovelos. Com o inconveniente de que ninguém manda uma velha fechar a matraca, ao contrário do que pode fazer com qualquer adulto, como o negro que falava e ria o tempo inteiro.
O ônibus chegou. Hermenegildo subiu. “Bem, agora vamos descobrir o grande mistério.” Ele gostava das primeiras quatro poltronas na primeira fila, porque era ônibus executivo com dois pavimentos, as quatro poltronas dianteiras do pavimento superior têm espaço para o viajante esticar as pernas entre o vidro panorâmico e a poltrona. Mas quando foi comprar as quatro estavam vendidas e ele comprou a de número 17, porque é o número do grupo do macaco.
Hermenegildo colocou a bolsa no bagageiro acima da poltrona e segurou a manta de lã nos braços. Esperou e a companheira de viagem apareceu. Uma supresa. Era uma bela loira com?vestido branco de tecido fino. Ela parou ao lado da poltrona e começou a ajeitar a bolsa no bagageiro. Ele olhou: a dona tinha um belo par de pernas longilíneas. Ele pensou: “Baita de uma gostosa”. Ela sentou e disse: “Boa noite!” Ele respondeu: “Boa noite!” Ele não era do tipo que gostava de conversar com pessoas com as quais viajava de ônibus.
Um dos motivos é que costumava dormir assim que o ônibus se punha em movimento, depois porque incomodava os outros passageiros e também porque é raro o tipo de conversa interessante que se possa ter com alguém que acabou de conhecer involuntariamente. Mas ele olhou a loira e perguntou: “Você não costuma viajar de ônibus, não é?” Ela respondeu: “Realmente. Eu vim com minha i,rmã que se mudou para cá. Viemos de carro e eu estou voltando de ônibus.” Ela ficou curiosa e perguntou como ele descobriu. Ele ignorou a pergunta e disse: “Você está muito bonita com este vestido branco.” A mulher ficou incomodada com o elogio. Era o tipo de conversa desagradável para ter com um companheiro de viagem com o qual ia passar seis horas no escuro.
Ela disse seca, mas não ríspida: “Muito obrigada. O senhor é observador.” Ele puxou a perna, ergueu a calça e mostrou: “Eu estou de ceroulão.” A mulher achou estranho. Não era questão de intimidade excessiva, mas era estranho. Como a mulher era educada e elegante, ela perguntou: “O senhor não está com calor?” Ele respondeu: “Agora, estou. Depois, não estarei.” Ela o olhou desconfiada e percebeu que ele estava agarrado a uma manta.
Ela apontou a manta e perguntou: “O senhor vai se cobrir com a manta?” Ele fez expressão maluca e respondeu: “Faz parte dos meus planos.” Ela teve certeza de que ia viajar ao lado de um neurastênico. Mas, inofensivo. Enquanto conversavam, os demais passageiros se acomodaram em suas poltronas. Em seguida o motorista entrou para dar informações técnicas e desejar boa noite e boa viagem a todos. Que ficaram sabendo que o nome dele era Raimundo Wagner.
Depois que o motorista foi embora, as luzes foram apagadas. Hermenegildo puxou a manta contra o peito e se cobriu. Assim que as luzes se apagaram, o motorista ligou o ar-condicionado. Como as janelas do ônibus eram fixas, não podiam ser abertas, a temperatura do ar-condicionado era baixa. Muito baixa. A loira ao lado começou a sentir frio como alguém abandonado no Polo Sul – ou Norte. Ele percebeu. Ela puxou a perna para a poltrona, se encolhendo. Mas ele sabia, não ia adiantar.
Então, disse: “Desculpe a ousadia. Mas a senhora não quer que eu divida a manta?” Ela tremia. E respondeu: “Eu sou uma mulher casada!” “Amanhã cedo a senhora vai continuar casada. Mas se ficar tremendo no banco por seis horas amanhã cedo vai ser uma casada com pneumonia”. Ela disse tudo bem como o sujeito que no deserto vê um copo de água nas mãos de um beduíno. Ela se enroscou com ele embaixo da manta, com alívio e as suas últimas palavras foram: “Se meu marido visse uma coisa desta seria o fim do nosso casamento”.
Ele disse: “Ele não vai ver. Está escuro”. Ela se aconchegou junto a ele estranhamente feliz. Não era o fogo da paixão. Era o calor da manta e de dois corpos juntos contra o ar-condicionado que fez do ônibus uma geladeira. Na manhã seguinte ele acordou com a agradável sensação de dormir abraçado com uma bela loira casada, enquanto ela foi embora com um sorriso malicioso e a certeza de que aquilo seria segredo tolo que ia desaparecer e ninguém ia se importar como ninguém se importa com as folhas secas que somem na enxurrada depois da tempestade. Se bem que nem a enxurrada e nem a tempestade não tem nada a ver com a história.