O pai que fumou o caderno da filha e outros horrores diários

A cena mais desagradável em viagem de ônibus foi no inverno de 1971, quando morava em Curitiba e ia para Maringá, onde residiam meus parentes. Em viagem longa e noturna a gente dorme. Em Ponta Grossa acordei porque senti algo pegajoso perto do pescoço. Abri os olhos e senti peso no ombro. Era a cabeça do sujeito ao lado. No sono, em vez de virar para a janela, ele virou-se para o meu lado e apoiou a cabeça no meu corpo. Ele roncava de boca aberta e babava. Eu puxei o corpo, ele acordou e ainda achou ruim. Por pouco teve briga. Porque interrompi o sono do sujeito que babava no meu ombro. Fazia um frio danado, fui ao banheiro lavar o ombro e não consegui dormir até o fim da viagem. O sujeito dormiu o sono dos justos.

Por esta e outras eu fico ansioso e às vezes em pânico quando vou viajar, esperando para ver a cara de quem vai sentar na poltrona ao lado. Como não aparece mulher bonita, minha preferência é por gente magra e que não esteja cheirando mal. Tem gente que trabalha o dia inteiro, sua, não toma banho e ainda não passa desodorante. É catinga certa. Gente gorda ocupa espaço da gente e a viagem vira desconforto. Tem isto e mais. Eu fui para Guaratuba no fim de semana e uma senhora com cara de simpática sentou na poltrona ao lado. Parecia não gostar de conversa e ser gente boa. Era gente boa, mas gostava de conversa e estava neurótica com o Brasil. O que é normal. O nome era Margarida de Oliveira, professora no litoral.

A mulher estava revoltada com o monte de filhos de políticos empurrados pelos pais para, nestas eleições, pegar boquinha nas tetas públicas, quase sempre na Assembleia Legislativa. “Enquanto isso, o Brasil vai para o esgoto”, disse. Margarida diagnostica falta de interesse pelo país e o resultado vai aparecer em vinte anos. “Estamos formando uma geração despreparada para tudo”, disse. “De um lado temos a elite que se reproduz no poder e de outro um povo que parece os Morlocks”, completou. Eu me espantei porque pouca gente sabe quem são os Morlocks, povo subterrâneo do livro “A Máquina do Tempo”, de H. G. Welles, que por serem abandonados pelas elites da Terra, os Elois, acabam descobrindo uma forma de viver: comendo a elite que vive na superfície, como a gente come carne de boi e de frango.

A professora contou cenas de horrores diários com os seus alunos, os futuros Morlocks. “Um dia cheguei para uma menina e pedi o caderno. Ela disse que o pai fumou o caderno”, contou. Eu não entendi como um pai pode fumar um caderno e ela explicou que ele era viciado em crack e por falta de papel usou o caderno da filha. “Outro dia uma garota desapareceu. Fui saber que estava em Joinville. Ela namorou um rapaz que era traficante e quis cair fora. Ele não deixou, ela insistiu e ele deu um tiro na boca da moça que era bonita, só para estragar o rosto. Agora a menina está com um buraco na cara”, disse. Margarida foi reclamar de um garoto para a mãe, que disse: “Expursa o disgraçado! Isso não tem jeito. Essa peste já me fez perder dois namorados”.

As histórias doidas se sucediam: “As crianças chegam desmaiando para a aula. Sabe por quê? Fome. Elas não tomam café da manhã. As mães não alimentam os filhos. Ficam paquerando na internet, enquanto o marido vai trabalhar”, contou. “Você já reparou que nenhuma criança hoje diz que vai contar para o pai quando acontece algo errado?”, perguntou. Era verdade. Hoje em dia é raro uma criança recorrer ao pai na hora do aperto. Teoria da professora Margarida: “A maioria não tem pai, outras não sabem quem são e as que têm pais sabem que eles não estão preocupados com elas”. A viagem durou duas horas e foram duas dezenas de histórias. Uma pior que a outra. E se a viagem fosse mais longa, seriam centenas. Eu fui descansar em Guaratuba, mas quando cheguei à cidade estava em pânico. Se a professora Margarida estiver certa, o Brasil está ferrado. E os bacanas no poder se perpetuam deixando filhos nos seus lugares. Nepotismo democrático. Se os pais não consertaram o país, os filhos muito menos. Os Morlocks um dia vão pirar. Há limite para tudo.