O morto que não deixou Virgílio dormir à noite

Numa manhã fria e nublada, bem cedo, por temor de pegar chuva, eu sai um pouco antes das 7 horas para dar uma volta na ciclovia com a minha cachorra. E encontrei Virgílio Mancuzo que estava indo trabalhar de cara amarrotada. Ele me viu e perguntou: “Tirou o rottweiler para dar uma volta?”. Como a cachorra é cocker spaniel, interpretei aquilo como piada e conclui que Virgílio estava de bom humor logo de manhã, embora o tempo estivesse mal humorado. E observei: “Acordou de bom humor, hein amigo?”. Ele emendou piscando o olho, que parecia arder: “Bom humor o cacete! Eu passei a noite em branco. Não dormi. Para ir trabalhar tive que tomar um rebite. E agora meus olhos estão ardendo”. Rebite é um preparado que alguns motoristas tomam para não cair no sono durante viagens noturnas.

Eu perguntei o que aconteceu e ele disse: “Um cadáver não me deixou dormir. Ele cheirava mal! Não há nada que cheire tão mal quanto um cadáver em decomposição”. Mais uma vez pensei que ele estivesse brincando. Mas falava sério. Ele contou que a empregada do prédio descobriu um cadáver no 12o andar. Descobriu é maneira de dizer. O cheiro de carne putrefata foi ficando forte; os vizinhos não aguentaram. E mesmo que abrissem as janelas para ventilar, o cheiro adocicado e podre invadia as narinas. “E com um cheiro desses é impossível dormir”, concluiu Virgílio. Eu quis saber como a coisa terminou e ele respondeu que ainda não tinha terminado.

A polícia foi ao prédio de Virgílio e informou que foi morte natural e neste caso não ia mexer no cadáver. Era com um departamento da prefeitura, que tinha acordo com o IML (Instituto Médico Legal). Na realidade eram os mesmos caras que iam tirar o cadáver do apartamento, mas quem ia dar a ordem para tirar o corpo não seriam eles, mas um funcionário da prefeitura que ainda não fora comunicado. E por esta razão o cadáver ainda estava lá. Então eu reparei bem na cara de Virgílio. E aquilo que achei que fosse “amarrotado” era na realidade “apavorado”. Ele contou que subiu ao 12º andar para ver o que estava acontecendo e quando viu o cadáver no chão da sala ele ficou em estado de choque.

Ele disse: “Rapaz, só de pensar que um dia vou ficar daquele jeito eu passei mal. Aquilo foi muito impactante na minha cabeça. O ser humano é um troço muito estranho”. De qualquer forma, era este o problema de Virgílio naquela manhã. Antes de ir embora, ele disse: “Escreve no teu jornal. É preciso contar porque se eu ficar falando as pessoas não acreditam. Mas isto aí está acontecendo”. Em vez de escrever, eu avisei o Miguel na Redação e ele informou o Jadson que estava em Almirante Tamandaré, onde houve um incêndio e um velho morreu queimado durante a noite. O repórter foi direto para o prédio em que Virgílio mora e chegando lá constatou que a história era real.

O Sr. Asdrovaldo Martins de Albuquerque, funcionário público aposentado, vivia sozinho em seu apartamento com aposentadoria que lhe permitia desfrutar certa tranquilidade. No entanto, ele era irascível, divorciado e não se entendia com a família. Aparentemente não tinha amigos e não se dava com os vizinhos. Além de sorumbático, taciturno, macambuzio e misantropo, ele também gostava de tomar uns gorós.

Então, numa noite que não foi bela, o Sr. Asdrovaldo passou mal, não conseguiu chegar ao telefone para pedir socorro e foi morrendo aos poucos, até morrer definitivamente – embora ninguém morra temporariamente. Morto, o espírito foi para as monadas celestes ou seja lá qual foi o endereço que ele tomou enquanto o corpo ficou lá no apartamento sujeito aos efeitos químicos que recaem sobre os organismos biológicos que perderam a essência vital. Evidente que o processo provoca emissão de aromas pouco agradáveis e foram eles que impediram Virgílio de ter um sono reparador. Ainda naquele mesmo dia o corpo foi levado pelo pessoal da prefeitura e a história terminou aí. E como eu previra, depois do passeio logo de manhã, desabou um aguaceiro enquanto nos apartamentos da cidade dezenas, centenas de outros dramas estavam em gestação.