Eleanor Gasparini é uma senhora de 78 anos. Quando atravessei a rua ontem de manhã para tomar um suco de laranja na Galeria Suissa, ela me interpelou e disse: “Eu posso falar com o senhor um momento?”. Eu a olhei e ela me pareceu uma velha simpática, mistura de Agatha Christie com Dona Maria Aparecida, mãe de uma amiga minha de São Paulo. Eu a convidei para tomar um suco de laranja e ela disse que me acompanhava se pudesse tomar suco de melão. Eu disse que sim porque sairia mais caro iniciar uma discussão do que pagar um suco de melão. Uma vez na lanchonete, eu pedi os dois sucos, nós sentamos a uma mesa e enquanto esperávamos os sucos, Eleanor Gasparini me disse a sua idade e que morava na Vila Izabel.

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Eu senti calafrios. Eu tenho certo desconforto em pensar na Vila Izabel porque em maio de 1998 estacionei o meu Gol em uma de suas ruas e quando voltei o carro não estava mais lá. Fora roubado. Eu lembro que alguém me disse que naquela temporada era o carro preferido pelos ladrões por causa do motor usado para fazer Jet Sky. Não conferi se realmente usavam motores de carros roubados em Jet Sky, mas depois do susto eu registrei o roubo na delegacia do bairro. Afinal, se os ladrões atropelassem alguém e fugissem a responsabilidade seria minha, disse um advogado amigo. Detalhe: o seguro do Gol tinha vencido no dia anterior. Essas coisas acontecem. Mas não contei nada para Eleanor Gasparini. Ela disse que era viúva e leitora da Tribuna. “Gosto de ler a Tribuna porque não me sinto sozinha”, disse ela.

A viúva contou que gosta de livros de mistério e se impressiona com o número de crimes sem solução na cidade. Ela enumerou uns vinte. “Esta cidade não tem detetives?”, perguntou. Eu respondi que havia o Sr. Lindomar Stenzel, mas além de velho ele andava muito ocupado. “Coitado”, disse ela. Eu concordei. Enquanto ela falava de crimes, os nossos sucos chegaram. Eu perguntei se ela queria comer um salgado, ela respondeu que não gostava de salgados de bares; preferia os que ela fazia em casa. Então disse que me procurou para contar o mistério do gato que não miava no quintal do vizinho. Eu perguntei onde ele miava. E ela disse que miava na janela do seu quarto. Realmente era um caso estranho.

“O constrangedor é que não gosto de meu vizinho e sou correspondida porque ele não gosta de mim”, disse Eleanor. A situação ficava insuportável porque Eleanor não dormia com os miados noturnos. Ela temia reclamar ao vizinho e iniciar um conflito fronteiriço interminável por causa de um gato. Eu dei uma bicada no meu suco de laranja e perguntei curioso: “A senhora tentou registrar queixa na polícia?”. A velha respondeu com picardia: “Meu filho, se a polícia não resolve os problemas dos gatunos, como resolveria os dos gatos?”. Era proposição correta. Eu por exemplo nunca mais vi o meu Gol. Eleanor bebeu prazerosamente o suco de melão e comentou: “Eu adoro suco de melão. Além de tudo é bom para o estomago”. Eu concordei com ela para não nos desviarmos do assunto principal.

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Em seguida perguntei: “O gato continua miando em sua janela à noite?”. Ela disse que não. Que resolveu o mistério dos miados noturnos do gato do vizinho. Eu fiz cara de interessado, mas não perguntei nada. Ela gostou daquilo e disse: “O pobre do gato queria apenas entrar em minha casa para dormir porque o vizinho não o deixava dormir em sua casa. Como o vizinho era irascível e grosso, o gato foi miar em minha janela apostando corretamente nos meus bons sentimentos”. Eu comentei enquanto tomava o último gole do copo de suco de laranja: “Absolutamente fantástico, Dona Eleanor. Absolutamente fantástico”. Ela também terminou o seu suco. E fez cara preocupada. Antes de pagar os dois sucos eu perguntei se havia mais algum problema. Eleanor disse: “Como o senhor percebeu, eu, o gato e meu vizinho estamos vivendo um triângulo amoroso. Eu gosto do gato, e o vizinho também gosta e o gato gosta de nós dois. O problema é que eu não gosto do vizinho e nem ele de mim”. Ela estava correta. Ela perguntou: “O que eu faço?”. Eu respondi com sinceridade: “Não sei, Dona Eleanor”.