Eu o vejo de vez em quando sentado na soleira de uma agência bancária nas ruas do centro da cidade, de mãos estendidas pedindo esmola. Eu já percebera que o Sr. Egberto tinha voz diferente de seus pares. Voz grave como a de um barítono, bondosa como a de um profeta e firme como a de um general. Eu o imaginei num púlpito conclamando fiéis a serem virtuosos. Ia fazer sucesso. Mas estava na calçada dependendo da generosidade alheia. Eu me lembrei dele porque eu o vi ontem defronte da Casa Edite, certamente procurando um ponto estratégico para exercer o seu ofício. E percebi mais duas coisas que não combinam com um mendigo: porte altivo e expressão orgulhosa. Aquilo me encafifou. Além de altivo, o Sr. Egberto era alto e altaneiro.

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Um mendigo soberbo é quase a negação da mendicância. O fato de não ser lamuriante em si já surpreende. O exercício da mendicância tradicional pressupõe que o pedinte seja um coitado que mereça a compaixão do “cidadão generoso”, abastado ou não. Todas estas observações eu as guardei para mim. Com quem iria comentar sobre o Sr. Egberto? Poderia no máximo sugerir a um maestro que o convidasse para teste com a finalidade de averiguar se teria futuro no canto lírico. O mendigo estava fisicamente mais para Plácido Domingo do que para Luciano Pavarotti e vocalmente era um Ettore Bastianini. Mas não tenho ciência de que haja em Curitiba oficina destinada a dar oportunidades a mendigos com potencial de voz para a ópera.

Além disso, a maioria das pessoas não tem interesse em mendigos. Embora muitos surpreendam. Como Rafael Nunes, 31 anos, conhecido como “mendigo gato”, depois de tirar fotografia enrolado numa coberta diante da Catedral de Curitiba. “Gato” no caso não porque roubava, mas porque era de boa aparência física, destas que provocam calafrios nas mulheres. E elas são mais observadoras que os homens. É por esta razão que escrevo sobre o Sr. Egberto. Há duas semanas ele estava em plena concorrência com outro mendigo na calçada da Rua Marechal Deodoro, com sua voz de barítono ou de profeta, quando duas mulheres passaram e uma disse para outra: “Menina, você ouviu?”. A outra virou, olhou o Sr. Egberto e indagou para a amiga: “O que foi?”.

A observadora disse: “Que mendigo de voz mais sensual!”. Acredito que havia um pouco de exagero na observação. Eu olhei a mulher: era uma dona de primeira – muito bonita. A voz do mendigo podia ser melodiosa e tocar os sentidos da observadora de forma especial – até sensual. O que não adiantou para o Sr. Egberto, pois ela não lhe deu um centavo sequer. Foi então que me senti perdido no meio da cena e dei-lhe dois reais. Ele disse com voz vigorosa, que não achei sensual, devo acrescentar: “Que nunca lhe falte nada, meu amigo!”. Gostei de ouvir aquilo. E também espero o mesmo, embora saiba que as coisas não funcionam apenas na base da lábia. Eu perguntei: “Desculpe, senhor! Qual é a sua graça?”. Ele respondeu: “Eu me chamo Egberto”.

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Eu fui embora. Achei o nome bonito para ser nome de mendigo, mas o mendigo também tinha voz bonita para um mendigo. Eu estava confuso. “Será que o nome dele é realmente Egberto?”, perguntei, sem ter resposta definitiva. Nestas atividades periféricas nas ruas da cidade – como prostitutas, mendigos e ladrões – as pessoas não costumam usar nomes verdadeiros. Não faz a menor diferença se um desconhecido souber que ele se chama Zé, Egberto ou Hugo Fernando. Lembrei-me de Rafael Nunes mais uma vez, que era modelo e estava nas ruas em decorrência das drogas. Será que o Sr. Egberto era cantor lírico e por uma decepção amorosa se jogou na vida errante? Tem homens que agem de forma autodestrutiva quando levam um inesperado e violento pé no traseiro de uma dona de primeira. Já vi bons filmes com este roteiro. Não tinha como saber. E acho que nunca saberei. Eu disse em voz alta: “Está um dia bonito. Será que à tarde vai chover?” As pessoas que passavam me acharam maluco. Nada. Eu queria ouvir minha voz. Fichinha perto da voz do Sr. Egberto. Nenhuma dona de primeira ia dizer: “Que senhor grisalho de voz mais sensual”. Sem chance.