Entrei na agência dos Correios da Rua Marechal Deodoro e um tipo andrajoso, sujo, barbudo e cheirando mal, entrou junto, com expressão pesarosa e pensativa. Como não carregava envelope ou encomenda, ao contrário, estava com braços caídos e nada nos bolsos e nas mãos, fiquei me perguntando aonde ia e, principalmente, o que desejava. Minha curiosidade durou pouco. Não sei se todos os leitores sabem, mas na agência central dos Correios há vários bancos dispostos de tal forma diante dos guichês de atendimento, que se assemelham às poltronas de pequeno anfiteatro. A diferença é que os caixas da agência dos Correios não dão show e tampouco fazem espetáculo. São muito comedidos.

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Eles não fazem, mas o mendigo não ignorou a seleta plateia. Aliás, mais comportada que algumas plateias de teatro, formadas por pessoas que não respeitam os atores e atendem celulares. Ali não tinha celular, e o silêncio era rompido apenas pela placa eletrônica chamando o número da senha do próximo a ser atendido. O mendigo postou diante da plateia como regente de uma grande orquestra, abriu os braços e disse: “Bom dia, meus cidadãos! Meu nome é Gregório de Souza. Como podem notar, pelo meu estado, eu sou um mendigo. E como mendigo, estou pedindo ajuda de meus semelhantes. Neste momento, vocês”.

Eu não acreditei no que ouvia. O mendigo tinha o dom do vernáculo e dominava a arte da oratória. Para não dizer que era perfeito, havia só um “porém”: a voz era meio pastosa, provável consequência da ressaca pela bebedeira da noite anterior. Mas, no resto, o cara mandava bem. A plateia fingiu que não ouviu e ele insistiu: “Eu sei que vocês me ouvem. E também sei que é desumano me ignorar. Eu quero apenas seis reais. Não vai ser um problema se apenas três pessoas fizerem a doação de dois reais, cada uma”. Ninguém deu bola. Neste momento não deixei de conjecturar se aquele homem não entrou em um destes novos templos neopentecostais. A técnica de convencimento era muito parecida. Ele trabalhava com o sentimento de culpa. A ausência eram expressões como Jesus, Senhor, pecado e inferno.

Então eu tive resposta para uma curiosidade: porque muitas pessoas enfiam a mão no bolso nestes templos para fazer doações. Porque o orador cria um clima de tensão no qual parece sair mais barato enfiar a mão no bolso que ficar com o sentimento de culpa pairando sobre o ouvinte, como sentença silenciosa gritando dentro na cabeça: “Você não vai fazer nada? Não vai dar um tostão para este pobre coitado? Você é um verme!”. É uma voz interior. Mas a maioria esmagadora das pessoas no recinto não estava dando a menor bola para a voz interior, para a voz do mendigo e para tudo mais. Quase todas estavam mudas, surdas e cegas. Menos uma.

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O mendigo, como um conferencista a viu e disse: “Olhem o exemplo daquela senhora generosa. Ela abriu a bolsa. Ninguém vai fazer o mesmo?”. Ninguém fez o mesmo e ele foi até a mulher, pegou os dois reais e tentou o golpe do leiloeiro: “Eu já tenho dois reais. Quem dá mais? Mais dois reais eu completo quatro. Não tem ninguém aqui que vai contribuir com mais dois reais?”. Não tinha. As pessoas olhavam fixas para a parede atrás dos atendentes do correio, para não encarar o mendigo, não encarar os seus olhos acusadores, lamuriosos, pedintes. As pessoas estavam tesas. Elas se sentiam ofendidas porque o mendigo as colocava diante de questionamentos que elas não fariam se ele não estivesse ali.

Finalmente o mendigo viu que não ia arrecadar os seis reais e tomou a decisão de ir embora. Mas, no entanto, antes de sair, ele voltou à frente – entre a plateia e os atendentes – e disse em sua voz pastosa: “Eu estou indo. Isto que vocês fizeram aqui nesta manhã foi feio. Eu vou voltar mais tarde. E tenho certeza que vou encontrar cidadãos com maior consciência social que vocês”. Assim como ele entrou, pesaroso, lento e pensativo, ele saiu. As pessoas continuaram em transe. Um transe só rompido pela placa eletrônica chamando a próxima senha.

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