“O mais difícil de tudo é fazer o prefácio”

Mariana Glinka não estava. Há tempo eu quero falar com ela sobre Alberto Nicasio, gravador argentino que ilustrou a edição de 1946 de Martin Fierro, publicada pela Editorial Peuser de Buenos Aires. Fui ao atelier comunitário e me disseram que ela chegaria à noite. Mas não tinham certeza. Ninguém foi capaz de informar com certeza se viria, porque se estivesse de serviço fora, poderia não vir. Então decidi ir embora. Na saída encontrei Leonardo Fróes, o velho Leonardo que conheci no São Lourenço. Um grande artista, mas também cheio de ideias mirabolantes. Eu perguntei como estava e com um sorriso cínico disse que sempre esteve bem. Eu disse que tinha saudades dos tempos de seu atelier no São Lourenço e ele disse que não tinha saudade nenhuma.

Não foi o fato de ser contrariado que me causou desconforto. Foi imaginar que os anos que ele passou no São Lourenço foram ruins e ele dissimulou. No entanto, era mais uma teoria de Leonardo: “Eu não tenho saudades porque não vivo do passado, que passou. E nem do futuro, que virá. Eu vivo do presente”. Eu achei melhor ficar quieto, mas também não podia sair correndo. Disse, tentando contemporizar: “Você não vive do passado, mas continua o velho Leonardo”. Ele riu e achei que não gostou da minha observação. Pensei com meus botões: “Mais um filósofo”. Não estava descobrindo agora. Leonardo sempre foi filósofo no sentido amplo da palavra: o de ficar pensando sobre todas as coisas e produzindo soluções teóricas, ainda que meio malucas.

Ele contou que há algum tempo foi numa palestra no Parque Barigui sobre a forma de se conviver nas cidades com as mudanças climáticas que o homem produz no planeta, mudanças já em curso. “Sabe a conclusão de um sujeito que era doutor em biologia e mais um monte de coisas?”, me perguntou. Eu não sabia, embora desconfiasse que a resposta não fosse surpresa. Leonardo disse: “O doutor em tudo que é coisa disse que o homem vai acabar com o planeta porque ele é mesquinho e não quer botar o pé no freio”. Leonardo me olhou, achando que eu ia ficar chocado. E como eu não fiquei, ele completou: “Ninguém quer largar o carro, ninguém quer abrir mão de hábitos nocivos para o planeta e de pequenos privilégios. E como ninguém abre mão, o planeta vai se envenenando”.

Não era errado o que o doutor disse e Leonardo repetia. Eu perguntei: “E o que você faz para mudar isso?”. Ele disse que procura soluções. “Hoje em dia não existe mais Leonardo da Vinci, é tudo gente medíocre. Estou tentando dar a minha contribuição”, disse. A contribuição dele era a seguinte: “Eu sou escultor. Gosto de escultura. E vejo a cidade como uma escultura. Cada casa é uma escultura. Tudo é escultura. Estou desenvolvendo uma escultura para o homem viver dois mil metros acima do solo. Vai mudar todos os conceitos atuais de vida. Desde alimentação, até brincadeiras de crianças. Tudo. Vai ser um admirável mundo novo”, disse empolgado.

Eu quis saber como ele organizava as ideias e ele disse que escrevia. “Por enquanto eu estou no prefácio de minha obra. O mais difícil de tudo é fazer o prefácio”, disse. Eu não sabia e fiquei ainda mais surpreso quando ele completou: “Estou na página 873 do prefácio e ainda não terminei”. Aquilo foi um choque. Se o prefácio que não estava pronto tinha quase 900 páginas, qual era o tamanho do tratado ou do livro sobre a nova sociedade? Ele disse candidamente: “Ainda não sei. Mas vai ser algo muito revolucionário e grandioso, disto você pode ter certeza”. Uma cidade construída sobre uma escultura que se eleva do chão a dois mil metros é algo realmente grandioso e gigantesco. Algo como uma nova Torre de Babel. E que demanda recursos volumosos e um número admirável de trabalhadores. Mas eu não observei nada disso para Leonardo porque, como ele disse, ainda estava no prefácio. O que não era ruim, pois o prefácio era o mais difícil. Mas ele tinha razão em tudo o que disse sobre o planeta, como sempre ocorre com visionários, por mais lunáticos que s,ejam. Ou o homem muda o ou planeta muda. Os dois não aguentam este ritmo.