Eu sempre quis entrar num restaurante na Rua José Loureiro, a poucos metros da Avenida Marechal Floriano, no centro da cidade. Ele me atrai pelo visual dos anos 50 e 60. Um estilo antigo que recorda o Bar Stuart em Curitiba e bistrôs de Montevidéu. E num dia desta semana eu fui como quem vai apreciar o ambiente. Sentei a uma mesa e na mesa ao lado dois velhinhos conversavam. O primeiro disse: “O Godofredo morreu em Quatro Barras”. O outro perguntou espantado: “Godofredo do Cine Avenida?”. O primeiro disse que sim. O segundo arguiu: “Mas ele não tinha morrido em 1996?”. O primeiro velhinho disse: “Rapaz, eu nem te conto o que ele aprontou!”. O primeiro velhinho contou que Godofredo aos 64 anos cismou que foi abandonado pelos amigos e que ninguém se importava com ele. “Ele estava deprimido e não admitia”, explicou.

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Godofredo ficou angustiado com a ideia de que ia morrer e não ia aparecer ninguém no velório. A mulher, Dona Efigênia, tentou apaziguar o marido alegando que ia aparecer muita gente e todo mundo ia dizer que ele foi um grande homem. “Sem contar que aposto que uns dois ou três vão chorar”, disse ela. Godofredo não acreditava. O casal morava no Boa Vista. A coisa chegou a um ponto que Dona Efigênia só viu uma saída: “Ela anunciou a morte de Godofredo num acidente em Castro, comprou caixão, fez velório e chamou todo mundo”. Caixão fechado, com abertura de onde se via a máscara de Godofredo feita por artista plástica. Máscara coberta por voil. Não passou pela cabeça de ninguém duvidar.

O segundo velhinho arregalou os olhos: “Que maluquice! Eu estava no velório. Eu lembro que tinha bandeira do Atlético cobrindo o caixão”. O primeiro velhinho disse: “Você, um monte de gente e o próprio Godofredo, que botou barba, óculos escuros e boné e ficou vendo e ouvindo o que os amigos diziam dele no velório”. O segundo velhinho não acreditava no que ouvia. “Mas o caixão foi para o cemitério! O enterro foi em Quatro Barras”, disse. O primeiro velhinho falou: “E daí? Se tem coisa que não perde valor é terra, mesmo que seja no cemitério. Sempre haverá cadáver enquanto existir a humanidade”. O segundo velhinho concordou: “É mesmo. Com a carestia, pode até ser um bom investimento”. Ele ainda disse: “Que homem doido! A minha sorte foi que eu falei um monte de coisas boas”.

Todo mundo falou, alguns choraram e depois do enterro Godofredo não podia mais ficar no Boa Vista. Até para não assustar as crianças ou para não ser preso. Dona Efigênia vendeu a casa e comprou outra em Quatro Barras, onde o filho mais velho do casal morava. E assim Godofredo viveu satisfeito os últimos 18 anos de sua vida em Quatro Barras. O primeiro velhinho disse: “Você não vai acreditar. Mas ele ficou tão feliz com o velório que a depressão e um monte de problemas desapareceram. Morreu de velhice no começo de setembro”. O segundo velhinho quis saber como o primeiro soube da história: “A Efigênia é irmã da Eunice, minha patroa. Eunice foi ao velório, que desta vez foi discreto, para os filhos e parentes próximos”.

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Alguns detalhes encabulavam o segundo velhinho. “E o túmulo?”, indagou. “O túmulo aceitou ele na boa. Túmulos não reclamam”, argumentou o primeiro. “Mas e a data da morte, como ficou?”, perguntou o outro. “Data de morte é detalhe. O importante é que desta vez o Godofredo está morto”. Finalmente o segundo velhinho perguntou: “Mas isto é verdade?”. O outro fez expressão de quem ia se ofender, mas considerou que não valia a pena. Ele disse convicto: “Juro por meus olhos que um dia a terra há de comer. Godofredo fez isto para ter certeza de que os amigos não falariam mal dele no velório”. O segundo velhinho ficou pensativo. E com expressão de revolta. De repente se lembrou de algo: “E a aposentadoria, como ficou?” O primeiro velhinho respondeu já se levantando e achando que a conversa espichou demais: “Aposentadoria você perde se não aparece para receber. Se até morto já recebeu aposentadoria, imagine quem estava apenas se fingindo, de morto?”. E era verdade.