Primeiro eu fiquei preocupado. O porteiro ligou e disse que tinha um homem lá embaixo querendo falar comigo. Ele queria saber se o sujeito de uma coluna que escrevi era ele. Há três meses eu escrevi sobre um sujeito preso em 1958 e no dia seguinte eu recebi um telefonema de um desconhecido: “Quem contou a história de meu pai?”. O homem estava com mais de setenta anos, era único filho vivo do sujeito. Eu contei que ouvi de um amigo que morreu e também de outro que escreveu um artigo sobre o pai dele. Ele ficou meio ressabiado, agora em dúvida. Por fim resmungou que acreditava que ninguém mais se lembrava do caso. E desligou. A coisa ficou por ali mesmo.

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Mas estes casos são como ruínas, ficam sempre em algum lugar e sempre tem alguém para lembrar. Por isso desci cabreiro, pensando o que seria desta vez. Era um homem de aparência simples, bem vestido, de sessenta anos. Ele se apresentou: “Eu sou o Abelardo”. Ele morou em São Mateus do Sul. Disse que lia a coluna. E que se identificou em uma história. Mas, pelo que ele falou, não era ele. Ele disse que gostaria de contar histórias interessantes que aconteceram com ele. Eu percebi que ele queria mesmo era que eu escrevesse sobre um daqueles casos que provavelmente contava aos amigos e eles gostavam.

No entanto, ali na minha frente, ele não conseguia contar uma história inteira – ou que tivesse sentido. Ele travou. Contou que uma vez foi jogar futebol em União da Vitória, mas não conseguia contar detalhes e nem explicar porque foi uma viagem inesquecível. “É a memória. Eu não consigo me lembrar dos detalhes”, disse meio encabulado. Eu compreendi. Achei que fosse timidez, isto sim. Eu disse para ele que a memória é como carburador: depois de certa idade entope e fica engasgando. Quando a gente precisa não aparece e quando não precisa aparece. Ele sorriu e falou: “É isto mesmo”. Ele disse: “Às vezes eu acho que estou ficando maluco”.

Eu falei para ele não se preocupar, porque também às vezes acho que estou ficando maluco. Mas, felizmente, sempre aparece alguém para dizer que não estou maluco. E eu acredito nestas pessoas. Ele riu: “Eu vou te contar um segredo”. Eu o animei: “Pode contar!”. Ele contou: “Eu ando no ônibus e olho as mocinhas”. Eu disse que isto não era segredo, eu fazia o mesmo. O segredo dele era diferente: “Eu sempre vejo uma mocinha com cara de atriz de cinema. Não é todo dia, mas sempre acho uma mocinha da cidade com cara de atriz”. Bem, eu achei que realmente ele estava ficando maluco. Mas me interessei pelo negócio: “Como é que funciona?”. Ele respondeu: “Simples. A gente fica olhando e encontra”.

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Ele disse: “Ontem eu vi a Greta Garbo. Até no jeito frio, elegante e distante”, disse ele. Eu me interessei: “Greta Garbo? Eu sou fã dela”. “Pois é”, disse Abelardo. “Ela me olhou silenciosa, baixou os olhos frios e não me encarou. Eu olhei as sobrancelhas finas, nariz fino, lábios finos, tudo na moça era fino, queixo fino que só a Greta Garbo tinha. Moço, me deu vontade de gritar: gente, a Greta Garbo está aqui!”. Eu quase perguntei: “E por que não gritou?”. Mas balbuciei: “Faz duas semanas que eu vi a Ornella Muti”. “A italiana?”, perguntou. Eu confirmei. Ele disse que viu várias Ornella Muti por ai. Brigitte Bardot também apareceu num ônibus para o Boqueirão. Mas se espantou em não ver, até hoje, nenhuma Marilyn Monroe.

Ele perguntou: “Você já ouviu falar da Sylvia Koscina?”. Claro! Ela atuou no cinema italiano. Abelardo disse: “Sylvia Koscina estava um dia no ônibus para o Bacacheri. Era dia frio e de chuva. Ela sentou ao meu lado e perguntou o meu nome. Eu senti que ela me deu bola”. Eu perguntei: “E você levou Sylvia Koscina para o motel?”. Ele abaixou a cabeça, envergonhado: “Nada, moço! Eu olhei assustado. E gaguejei. As palavras não saíram. Eu fiquei com vergonha de mim. Não disse nada”. Eu falei que aquelas coisas aconteciam. Ele perguntou: “Então o sujeito da história não sou eu?”. Eu disse que não. Mas este é. O homem que via atrizes no ônibus.

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