No final de minha infância, por volta de 1963, eu costumava ir, domingo de manhã, na Rádio Cultura de Maringá, que naquele tempo tinha um programa de auditório para crianças, comandado pela Tia Sônia. Eu fora assíduo alguns anos antes para ver os garotos e as meninas cantar. E, agora, maior, eu ia para ver a Tia Sônia. Presumo que a achava bonita ou coisa parecida. Depois eu dava um pulo na Padaria Herval que ficava a cem metros da rádio e sentava à mesa e ficava quieto, como estivesse mergulhado em profundos pensamentos. Na realidade eu estava ali para ouvir histórias de um homem cujo nome não me preocupei em saber.

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Por volta das 10 horas, ele aparecia. Era um homem de cabelos e barbas brancas, de óculos com aros de metal e voz rouca e pausada. Às vezes acendia e fumava cachimbo e em outras pedia bebida que bebericava sem pressa. E sempre aparecia alguém para perguntar algo que rapidamente desembocava numa história de guerra. Então aparecia outro e outro para ouvir. Eram histórias de sua juventude. Ele foi para a África e lutou ao lado de tribos em batalhas movidas por interesses que ele desconhecia. Ele aprendeu a lutar com os zulus e foi lutador amador de boxe na Europa. “Não fui profissional por tédio. Todos que eu enfrentei eu derrubei”, disse ele com segurança.

Ele era alto e forte e por isso – e talvez porque eu tinha interesse em acreditar – eu não duvidava. Eu gostava particularmente das histórias de guerra. Histórias que às vezes ouvia apenas em parte porque a voz do narrador ficava baixa e não chegava à minha mesa. Mas os trechos que ouvia impressionavam. “Eu disse para o comandante. Meu coronel, eu vou ali e coloco aqueles bastardos para fora e garanto a posição. Eu mando aqueles boches de volta para casa com o rabo entre as pernas”, disse ele. Nesse ponto pegava o cachimbo, enquanto o olhavam com reverência. Ele acendia o cachimbo que se apagara, soltava umas baforadas e continuava.

“O comandante disse: você é do estado-maior e vai ficar onde está. Aquilo me deixou muito chateado. Eu me senti amarrado porque sabia o que podia fazer”, disse para ouvintes admirados. Ele contou como abriu a brecha na Linha Siegfried e como libertou Paris comandando um grupo de soldados. Ele sempre tinha uma boa história. E em todos os conflitos em que participou, ele ganhou as batalhas e a guerra. Algumas frases caiam soltas. A partir delas eu via uma grande história: “O coronel disse: vamos pegar aqueles boches e não quero que deixem um só vivo, estão ouvindo? Vamos limpar aquilo e acabar com este negócio”. Depois ficava em silêncio, puxava fumaça do cachimbo e concluía: “Sabe rapazes, aquilo não foi fácil, mas foi divertido”.

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Eu lembro que alguém perguntou como era estar numa guerra e ele respondeu que estar numa guerra era algo parecido como estar num filme em que o sujeito sofre muito, leva tiros, mata muitos outros, mas no fim a coisa dava certo porque o importante numa guerra é você estar no lado certo. “E eu estava rapazes. Eu sempre estive ao lado da liberdade”, respondia. Quando chegava perto do meio-dia, eu ficava com fome e ia embora para casa com a cabeça cheia de histórias. Depois eu fui ficando adulto e aquele homem foi ficando velho. Ele não perdeu o hábito de ir quase todas as manhãs na Padaria Herval, para contar suas histórias de guerra, para fumar o seu cachimbo e tomar a sua bebida.

Em 1971, no meio do ano, eu vim morar em Curitiba. Retornei para Maringá na metade do ano seguinte. Depois de tentar me familiarizar de novo com a cidade, eu percebi que faltava algo diante da Padaria Herval. Era o velho. O velho homem de cabelos e barbas brancas, que fumava cachimbo e contava histórias de guerra. Eu perguntei para o sujeito da padaria o que aconteceu. Ele respondeu que o velho morreu num quarto de pensão, ali perto. Suspeitava que deu fim à própria vida. Talvez por tédio, por não haver mais guerras para ele ganhar, talvez por não suportar a velhice. Talvez por outro motivo que não consigo imaginar.

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