O homem que beijou os lábios de Suzana Flag

O meu amigo Mário Fragoso engatinhava ou sequer tinha nascido quando o meu tio Manoel apareceu em casa com um amigo carioca chamado Rosalvo. Os dois trabalhavam na fábrica de brinquedos Estrela em São Paulo e meu tio quando aparecia em casa tinha mania de se mostrar mais moderno que os seus irmãos que ficaram dando duro no cultivo do café no Norte do Paraná. O que era uma bobagem, porque ele ganhava um salário miserável e os irmãos dele estavam ficando bem de vida. A presença de Rosalvo transformou a visita numa verdadeira partida de truco, cada um querendo mostrar que sabia mais novidade que o outro e minha tinha Ana ficava fascinada com tanta sabedoria moderna. Foi naquela ocasião que ouvi pela primeira vez a gíria “de araque”, que significava algo como “mentira”, mas num contexto meio malandro.

Sozinho meu tio não falava tantos palavrões, mas estimulado pela presença de Rosalvo, que tinha um vocabulário mais sujo que pinico de manhã, ele se animou, para desespero de minha avó e para escândalo de minha tia. Quando as duas censuraram, ele disse que elas não eram modernas e que até os grandes escritores como Jorge Amado estavam recheando seus romances com palavrões. Minha prima que não tinha nada com isso disse que o professor de português dela falou que era verdade. E mais, disse meu tio: “Vocês são duas caipironas, porque no Rio e em São Paulo até as mulheres falam palavrões cabeludos”. Minha tia não acreditou e meu tio desfilou o nome de duas: Adelaide Carraro e Cassandra Rios. “O que estas duas escrevem, nem peão do sítio de Terra Boa tem coragem de pronunciar”, disse. Eu era pequeno e ouvia aquilo fascinado como torcedor vê uma partida de futebol. Querendo saber como ia terminar.

Meu tio disse que Adelaide Carraro teve um caso com o governador Jânio Quadros e escreveu um livro contando tudinho. Minha tia levou a mão à boca e disse: “Creio em Deus pai!”. Era uma expressão que significava algo como: “Que barbaridade! Não me diga uma coisa desta!”. Meu tio disse que Adelaide era um mulherão de primeira e que não foi feita para o bico dele. Mas que ele não pegou a Cassandra Rios uma noite na Avenida São João porque não quis. Ela foi com a cara dele e sempre estava pelos lados da Praça da República. Rosalvo repuxou os lábios e disse: “Sei não se ela gosta de homem!”. Meu tio disse que eles tomaram um rabo de galo num bar da Rua Aurora.

Para não ficar por baixo, Rosalvo disse que no Rio de Janeiro tinha uma escritora ainda melhor que as duas de São Paulo. Era Suzana Flag. Escrevia bem e ainda por cima era loira de fechar o comércio, do tipo de Rosamaria Murtinho. Meu tio sentiu o golpe e Rosalvo achou que era hora de liquidar a peleja. Ele mandou cheio de audácia: “Ela é uma grande jornalista e escritora. Uma noite eu a encontrei perto na Praça Mauá, nós conversamos e eu beijei os lábios quentes de Suzana Flag!”. Minha tia ficou corada com a revelação. Meu tio tentou disfarçar a frustração com uma pergunta: “Ela beija gostoso!”. Rosalvo arrematou: “Suzana Flag tem os lábios de mel. Aquilo é doce e queima como labaredas da paixão!”.

Meu tio engoliu seco e mudou de assunto. Minha tia ficou sem ar e para não ter um troço foi cuidar da máquina de costura, porque a conversa ficou muito luxuriosa para o seu gosto. Eu fiquei fascinado com aquela história. Mais tarde eu comprei um álbum de figurinhas e vi o rosto de Rosamaria Murtinho e me lembrei de Suzana Flag. Por onde andaria a bela escritora que o amigo de meu tio beijou na boca? Fui saber anos depois, quando eu fiquei rapaz e comecei a ler e descobri que ela na realidade era o pseudônimo de Nelson Rodrigues. Que de duas uma: ou Rosalvo era mentiroso, um conquistador de araque, ou ele sapecou um beijo na boca de Nelson Rodrigues. No asfalto de Copacabana. Mário Fragoso, que é admirador de Nelson, certamente diria: “Tudo é possível. Seria apenas mais uma história rodrigueana”.