O gigante que vestia um imaculado terno branco

Eu passeava entre os estandes das editoras no pavilhão de exposições do Parque do Ibirapuera em agosto de 1988, quando vi no primeiro piso um homem alto, forte, parado, olhando para o infinito. O reconheci de imediato. Era impossível não reconhecê-lo. Nunca vi alguém tão parecido com um escritor de cinema quanto ele naquele momento. Era um escritor dos filmes preto e branco que vi no cinema de minha cidade. Escritor altivo, pensativo e de terno branco. Expressão que afugentava qualquer estranho e desaconselhava qualquer aproximação. Naqueles dias eu conheci Fernando Sabino, Jorge Amado, Marcos Rey, Ligia Fagundes Telles, J. J. Veiga, Márcio Souza e outros. Mas nenhum me pareceu tão imponente quanto Rubem Braga em seu imaculado terno branco.

Não sei se tive esta impressão pelo fato de ele usar terno branco ou se porque ele lembrava alguns tios severos que eu tive ou se porque o seu rosto não demonstrava nenhum traço amistoso. Eu só sei que fiquei observando de longe sem intenção de me aproximar. Ele lembrava outros três escritores: William Faulkner, que também gostava de terno branco. O rosto tinha expressão patriarcal de um Mark Twain e de um Máximo Górki. Todos grandes escritores. Parecia que Rubem Braga os esperava. Ele estava parado, em pé, olhando o infinito e não tive coragem de me aproximar e conversar com ele. Também se tivesse coragem de me aproximar e falar com ele não sabia o que ia dizer. O que eu ia falar com ele? Não tinha a mínima ideia. Talvez a figura gigantesca me assustou. Ou me inibiu a expressão de quem esperava alguém.

A mistura de severidade patriarcal e preocupação com algo secreto, como a de um fazendeiro do interior paulista que chega entediado para conferir o andamento da colheita e não fala com ninguém que não seja essencial para os negócios continuarem como sempre foram, me aconselhou a deixar como estava. Fiquei pensando que ele estava bravo. Vai que acabou de mandar alguém às favas e aparece mais um candidato para ser mandado às favas. Por um instante ele lembrou o assustador e histriônico Venceslau Pietro Pietra, personagem interpretado por Jardel Filho em Macunaíma. Também um gigante. Rubem Braga me pareceu ali no Ibirapuera um europeu na margem de um rio da África esperando um vapor carregado de marfim. E acossado por tantas imagens conflitantes achei melhor cair fora.

 Aquele Rubem Braga eu não conheci. No entanto, o outro que eu conheci, o das crônicas, é uma pessoa quase bondosa, poética, sensível, coisa que aquele gigante não parecia ser. Conheci este outro que ao lado de Stanislaw Ponte Preta elevou a crônica à categoria de um gênero literário maduro. A crônica “Ai de ti Copacabana”, é quase um poema em prosa. E como correspondente do jornal Diário Carioca, Rubem Braga esteve nos meses finais da Segunda Guerra Mundial na Itália, de onde mandou crônicas que revelam o cotidiano de um território devastado pela guerra, pela estupidez, pela ignorância e pela intolerância. E mais que isso, ele deixou reflexões que em tempos de intolerâncias e rivalidades cegas servem de pequena chama na caverna escura da história. Para não repetirmos os seus momentos infames.

As crônicas de Rubem Braga sobre o fim da guerra foram publicadas a primeira vez em livro em 1945 com o título de “Crônicas de uma guerra na Itália” (406 pgs, Editora Record, R$ 45). Há quem as considere um trabalho análogo, no que se refere ao gênero “correspondente de guerra”, ao trabalho de Euclides da Cunha que resultou na confecção de “Os Sertões”. Acho a comparação exagerada, mas não acho exagero o apreço que se tem por este livro. Rubem Braga foi e viu o que a intolerância, a estupidez e guerra podem fazer. Ele escreveu naquele tempo em que os autoritários acabaram de ser derrotados: “O fascismo é uma praga difícil de exterminar”. E profético ele anunciava: “Ele pode voltar com outro nome”. O homem não aprende com a história. O homem aprende com a guerra. O homem parece não aprender com a vida, mas só com a morte. “A guerra é também uma terrível professora de solidão”, ensinou o cronista.