Eu estava indo para o banheiro da redação quando, ao entrar no corredor, sem perceber que o cadarço do sapato de meu pé direito desamarrara, pisei nele com o pé esquerdo e quando fui levantar o pé direito, perdi o equilíbrio e desabei como velho edifício implodido. Em rápidos segundos. Foi um escândalo: barulhão e tremenda queda de meu corpo pesado sobre o braço direito. Na hora achei que me arrebentei todo. Talvez fosse morrer. No mínimo quebrei o braço. Mais lépido que The Flash e mais rápido que notícia ruim, o comandante-geral da Cipa na redação, Gerson Klaina, correu para me socorrer.

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O que se supunha acidente com fratura ficou aparentemente na mixaria de contusão no braço direito, com suspeita de rompimento de tendão. Entrei em medicação para saber, segunda-feira, se farei ou não tomografia. Até ir ao médico, o braço doeu e muito – não podia mexê-lo. No fim do dia, quando fui para casa com o braço imóvel, peguei o Vila Suíça lotado. Horário de rush. Faz sentido. Fui em pé. E sem paciência ou disposição para nada que não fosse chegar em casa, tomar banho e dormir. Estava todo arrebentado, mas vivo. E ouvindo direito. Por isso, ouvi a conversa de dois garotos que voltavam da escola para casa – uniforme do Colégio Estadual do Paraná.

Eles se preparavam para a prova do Enem. Não sei como a conversa desandou e foi parar no pai de um deles – Anderson. Ele disse que seu pai era um cara bacana, maravilhoso. Mas um dia fez algo ruim que ele nunca esqueceu. E jura que nunca vai esquecer, porque ficou magoado, dolorido com aquilo. Quando ele falou em dor eu olhei para ele com cara de Jack Palance pronto para dizer: “Quer sentir uma dor legal, garoto? Se apincha no chão e arrebenta o braço. Você não vai esquecer nunca”. Mas não disse nada.

O episódio entre Anderson e o pai foi o seguinte: o tio Manduca era surdo. E um dia ele foi de automóvel com o pai de Anderson para algum lugar. Marido e mulher no banco da frente e filho e tio no banco de trás. Começa respingar e tio Manduca apertou o botão para subir o vidro traseiro do carro. Como era surdo ele não percebeu que aquilo estava enguiçado e fazia barulho irritante. Ele não ouvia, mas os demais que não eram surdos ouviam. O pai de Anderson estava irritado com o trânsito e ficou mais ainda com aquele barulho. Ele virou o braço e deu tapa na perna do garoto: “Pare com este negócio, seu maluco!”.

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Mais que a dor de tapa, doeu o gesto do pai. O garoto respondeu, magoado: “Não fui eu. É tio Manduca. Ele não ouve porque é surdo”. O pai de Anderson berrou com Manduca para ele parar com aquilo e ele parou. Para o pai do garoto, a crise terminou aí. Mas não para o garoto que ficou magoado naquele dia – e para o resto da vida. Ficou de cara amarrada, a mãe contou para o pai o que acontecia, o velho pediu desculpas, o garoto fingiu que aceitou, mas toda vez que eles se desentendiam, Anderson abria a velha ferida: “Você é injusto. Naquele dia me bateu sem razão, porque o tio Manduca é surdo”.

Eu ouvi aquilo. Eu angustiado para me livrar de minha dor no braço, que era uma dor física e latejante, nem era coisa que cicatrizava na alma e Anderson ali, zelando para a sua pequena dor não acabar, dor de tapa e de mágoa de o pai ter estourado injustamente com ele dentro do carro num trânsito louco. Olhei para o garoto. Parecia ser bom garoto. Provavelmente era. E gostava do pai. Um dia, quando se visse privado da presença do pai, e isto certamente aconteceria, se uma tragédia não privasse antes o velho do filho, ele descobriria que não se fica magoado para sempre com um cara bacana, ainda mais se este cara bacana é o seu pai. Ele já tinha idade suficiente e mais que isso percebeu que aquilo foi um equívoco. Mas, como diria Paulo Leminski, carregava a sua dor elegante. Um garoto. E já “carregava a sua dor como portasse medalhes, uma coroa, um milhão de dólares, ou coisa que os valha”. Enquanto eu trocava a minha dor no braço por qualquer mixaria. Desculpe poeta, a dor é um troço chato pra cacete.

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