O filósofo da ciclovia e seus problemas de lógica espacial

Com o fim da temperatura amena e a chegada do calor, algumas medidas hodiernas são necessárias. São coisas simples, mas que devem ser adotadas para a vida não sair dos trilhos. Uma delas é o passeio matinal. Quanto mais cedo sair de casa para dar volta no parque, pegando os estertores da fresca da noite, melhor. Sem contar que o horário de verão entrou ontem em vigor, então para quem saía de casa às seis horas para dar uma volta no parque, na lógica da natureza está saindo por volta das cinco horas. No meu caso é uma necessidade porque saio com uma cachorra da raça Cocker Spaniel chamada Bela, cujo pelo negro mais parece casaco de vison que outra coisa. Depois das sete horas, com o novo horário, o bicho não anda cem metros sem bufar – e faz pit stop na sombra.

Andar cedo é bom, mas pode ser inconveniente. É o horário preferido de Otto Hellmeister, o filósofo da ciclovia. Na realidade, existem muitos, mas ele é o único que me escolheu para interlocutor. Está sempre preenchendo a existência com um drama profundo para resolver. Problemas que vão desde as possibilidades matemáticas de o Coritiba ou o Atlético escapar ou não escapar do rebaixamento, até complicadas equações quânticas ainda não solucionadas pelos físicos de plantão. E a conversa vai longe. Quer dizer, se ele é requisitado através do celular acaba na hora. A conversa vai de acordo com a disponibilidade de tempo dele. E não adianta tentar escapar, porque ele pega o interlocutor pelo braço.

Embora tenha nome e sobrenome alemães, Hellmeister é mulato. Ele odeia que alguém lembre que é mulato. Mas, às vezes, bate alguma coisa e sem mais nem menos, ele solta “eu sou moreno”, para em seguida esclarecer: “Minha mãe era alemã”. E ele se pendura neste lado alemão para filosofar. Quando eu vejo, finjo pressa instantânea, grito para a cachorra acelerar o passo, o que é inútil: cachorro de apartamento quando sai na rua, cheira mais que o Maradona nos tempos de doideira. E nunca está satisfeito. Quando vi Hellmeister ontem de manhã na ciclovia, tratei de apressar o passo e arrastar a Bela pela guia. Eu me considerei com sorte porque ele estava ao celular. Mas esfriei quando ele disse: “Espera um pouco. Eu te ligo daqui a pouco”. Ele desligou o celular e parou na minha frente.

É que ele tinha um assunto sério para conversar. E foi dizendo que acreditava que o homem devia arrumar um jeito de fazer viagens para outros planetas o mais rápido possível. Às seis horas da manhã um sujeito com uma cachorra ouvir uma conversa desta não é fácil. Hoffmeister disse: “Estou com um terrível problema de lógica espacial”. Eu pensei: “Agora é que o bicho pegou”. Ele explicou: “Eu tenho uma profunda fé no futuro da humanidade, mas não acredito no futuro do planeta. E como a humanidade pode ter algum futuro, se ela está acabando com o planeta?”. Era realmente uma bela questão de lógica espacial: se o homem empestear o planeta ele vai ter que arrumar outro espaço para morar. E não tem.

Eu disse: “Então trate de perder a fé no futuro da humanidade, porque se ela acabar com o planeta, estamos ferrados”. Ele me pegou no braço, assustado, quase apavorado: “Você tem certeza?”. Eu pensei que não ia perder e nem ganhar nada se dissesse a minha opinião: “Tenho absoluta certeza. Eu levo seis horas para ir até Londrina num ônibus da Garcia. Como é que vamos percorrer milhões, bilhões ou quem sabe trilhões de quilômetros no espaço sem saber aonde ir atrás de um planeta que a gente não sabe se existe. Sem um Imbaú no meio do caminho para comer um pastel de madrugada? Perca a esperança. Se acabarmos o planeta, bye-bye”. A Bela se contraiu, defecou e para mostrar que eu cuido bem do planeta, recolhi a porcaria e botei num saco de papel. Hellmeister fez cara de deprimido, me olhou como se eu fosse o profeta do Apocalipse. Eu acho que acabei com o resto do dia dele, porque ele se afastou cabisbaixo. E fui em frente tentando controlar a euforia da cachorra, que não tinha a menor ideia de que estamos acabando com o planeta e não temos para onde ir.