O meu amigo Bambu, cujo nome de batismo é Gerson Klaina, tem uma Pata Choca. É um carro militar dos anos 40, veículo rústico e desconfortável. Bambu me chamou para ir com ela para o território entre Curitiba e Castro, porque queria conferir a região em busca de um lugar para fazer trilhas. Bambu também é jipeiro. Na realidade ele faz um monte de coisas. Ele é o tipo de amigo “macaco gordo”. Está sempre quebrando os galhos dos amigos – e até de desconhecidos. Uma de suas últimas foi limpar as calhas do telhado do Museu do Expedicionário que estavam entupidas. Por isso, quando ele me chamou para ir com ele, não pude negar. Nem é questão de gratidão. É que eu posso precisar dele para outra coisa e sei que posso contar.

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Amigo assim vale o peso em ouro. E Bambu é pesado pra chuchu, além de alto e forte. Eu fui com ele com a mesma alegria de alguém em cima de um caminhão de mudança, me chacoalhando num banco duro de madeira. Bambu perguntava: “Está se divertindo Cabeça Branca?”. Eu respondia: “Nunca me diverti tanto”. Só pensava na volta. Se meus ossos ainda estariam nos seus lugares de origem. Mas é a velha história, quando a coisa não é aquela que o sujeito espera, a maionese desanda. Uns trinta quilômetros adiante não sei de onde, Bambu entrou por uma estrada secundária. De terra. E foi por outra. Chegou um momento em que eu não sabia onde estava e desconfio que ele na tentativa de procurar o tal lugar ideal para trilha também não sabia. Aí deu um problema na Pata Choca.

Bambu tentou consertar e não conseguiu. Ele disse que ia em frente para procurar alguém para rebocar o veículo. E sem esperar minha resposta, foi andando e desapareceu. Eu fiquei no meio do nada em cima de uma Pata Choca. E pensei: “Como é que eu me meto numa desta?”. Pior se Bambu encontrasse alguém que falasse muito. Era capaz de passar o dia conversando e se esquecendo de mim em cima da Pata Choca. Olhei para os lados e não vi nada além de pastos e vacas. Aliás, tinha um homem sentado em cima de um toco olhando as vacas placidamente. Éramos os dois naquele fim de mundo. Eu cima da Pata Choca e o outro em cima do toco. Passou meia hora, passou uma hora, e quando passaram duas horas eu percebi que eu não sai do lugar e o homem das vacas também não.

Eu desci da Pata Choca e fui ao toco dizer boa tarde para o homem antes que a tarde fosse embora. O homem também não se mexera aquele tempo todo. Achei que poderia ser estátua. Quando cheguei, conferi: era um homem de verdade. Eu cumprimentei: “Boa tarde, parceiro! Desculpe a curiosidade: mas o que o senhor faz aí neste toco olhando as vacas todo este tempo?”. O homem virou e disse: “Estou filosofando!”. Eu achei que ele não gostou da minha pergunta e estava de gozação para o meu lado. E pensei: “Bem feito, quem me mandou sair do meu lugar”. Eu fui dar meia volta e o homem disse: “Eu sou um filósofo vaqueano”. Não conhecia o gênero.

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Ele continuou: “Na natureza, moço, o grande engole o pequeno. O grande come o pequeno. Quem manda mais chora menos”. Eu disse por dizer: “É verdade!”. Ele continuou com a filosofia vaqueana: “Eu olho estes bichos inocentes, pastando, sem a menor noção de que vão ser comidos pela gente. Por isso que a gente alimenta milhares deles”. Mais uma vez eu disse: “É verdade!”. O homem arrematou: “Por isso, eu fico aqui matutando. Assim como tem milhões de vacas neste mundão para serem comidas, existem bilhões de pessoas também”. Eu comecei a ficar assustado. E perguntei: “O que senhor quer dizer com isso?”. O filósofo vaqueano respondeu: “Eu fico matutando. Alguém tá cevando a gente pra comer. Eu gostaria muito de saber: quem vai comer a gente?”. Eu fiquei assustado com a filosofia vaqueana. Ele disse: “Entendeu a ressonância do problema?”. Eu ia dizer que entendi, mas ouvi o barulho de um caminhão. Era Bambu com o socorro. Eu me afastei do filósofo vaqueano preocupado com a ressonância de seu problema. E naquela noite eu não dormi direito pensando na estranha lógica do criador de vacas.